quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Contas à Vida - 90's O Cabo do Medo



Título Original: Cape Fear
Realização: Martin Scorcese
Ano: 1991

Cinema com a assinatura de Martin Scorcese é como um motor da Mercedes: pode ser melhor ou pior um bocadinho, mas anda sempre que se farta. Um ano depois de "Goodfellas", Scorcese traz-nos um remake de um livro já adaptado para cinema em 1962, com Gregory Peck no principal papel. "Cape Fear" está longe de ser a sua melhor obra, mas não deixa por isso de ser um interessante trabalho, capaz de nos agarrar desde o princípio e envolver-nos cada vez mais na história, à medida que a tensão e a intensidade dramática vão crescendo gradualmente. É um tratado sobre o medo e as relações humanas, que nos deixa também a nós, espectadores, colados ao ecrã assustados e a chamar pela mãe. E nem lhe falta a influência dos "slasher movies", com algumas memoráveis cenas de violência gratuita e sangue a espirrar de fazer arrepiar qualquer um.

Mas é na violência psicológica que se joga o maior trunfo deste filme. Max Cady (Robert De Niro) é um ex-condenado que, após 14 anos na prisão por ter violado uma rapariga, se vê finalmente em liberdade. E o seu objectivo agora é vingar-se do advogado de defesa, Sam Bowden (Nick Nolte), e fazê-lo sentir a mesma dor que experimentou na cadeia. A razão é muito simples: Bowden, durante o julgamento, não apresentou ao juiz um relatório que poderia ter minimizado a pena de Max Cady. Na altura Cady era analfabeto, e Bowden pensou que este nunca se iria perceber da situação. O problema é que durante a estadia na prisão, Cady dedicou-se afincadamente à arte da leitura. O que se segue é uma espécie de jogo do gato e do rato.

A premissa é simples, mas Scorcese soube dar-lhe os condimentos especiais. É para isso que serve o talento. Bowden é, efectivamente, culpado por ter facultado uma defesa defeituosa ao seu cliente, Max. E também está longe de ser o chefe de família perfeito, mantendo relações promíscuas com uma secretária do tribunal. Aqui, e ao contrário da versão de 1962, não existe uma luta clara entre o bem e o mal. No seu esforço para salvar a família, Bowden tem ainda de enfrentar os medos e distâncias que existem no relacionamento com a mulher e filha. E a certo ponto põe em causa os seus princípios morais, recorrendo a métodos obscuros quando se apercebe que a lei é incapaz de o ajudar. Bowden não é um herói, mas apenas um homem cujos erros passados lhe batem à porta para cobrar dívidas.

A primeira cena de "Cape Fear" mostra Max Cady a exercitar-se, de tronco nú, numa cela da prisão. Corpo musculado, repleto de tatuagens com referências bíblicas, não precisa de dizer uma palavra para sabermos que se trata de um fanático, um homem perigoso, violento e demente capaz de tudo para atingir os seus fins. De Niro é absolutamente brilhante a encarnar uma personagem que parece desenhada à medida das suas características. É a personificação do mal, muitas vezes sem outra razão que não o simples gosto pelo mal. Os seus principais alvos são a mulher de Bowden, Leigh (Jessica Lange), e a filha, Danielle (Juliet Lewis). De forma lenta e metódica aproxima-se das vítimas e, principalmente, tenta ganhar a confiança de Danielle, uma jovem cuja tentação pelo perigo conduz a actos insensatos. O facto de ter sido anteriormente acusado de violação a uma rapariga da idade de Danielle - 16 anos - aumenta ainda mais a expectativa.

A realização de Martin Scorcese é ágil e habilidosa, com constantes zooms, alterações de ângulos ou de cores. Em conjunto, estes elementos fornecem um ambiente perfeito para a necessária construção da tensão. No entanto, e longe de mim querer pôr em causa as capacidades de Scorcese com uma câmara na mão, dá sempre a ideia que falta algo que nos faça identificar aquele cunho das grandes obras. As personagens e a história acabam por não ter a profundidade dramática a que estamos habituados. Para a maior parte dos realizadores, "Cape Fear" seria o ponto mais alto da carreira. O problema é que Scorcese está longe ser a maior parte. Assim sendo, é impossível não nos sentirmos um pouco - mas só mesmo um pouco de nada - defraudados no final. Porque bem vistas as coisas, é um tratado sobre como realizar bons thrilhers. Só falta um pouco mais de alma.

Classificação: 7/10

sábado, 20 de dezembro de 2008

Paris



Título Original: Paris
Realização: Cédric Klapisch
Ano: 2008

Não há volta a dar: Paris é a cidade romântica, a cidade dos amantes, cheia de um certo charme e glamour especial. Todos os românticos que se prezam sonham com um dia se apaixonarem perdidamente sobre as luzes de natal da Torre Eiffel, embora a realidade nos mostre que é bem mais provável que esses momentos aconteçam junto a um bairro social na Amadora, na altura em que a electricidade vai abaixo. E para quem sabe bem o que são as amarguras da realidade e quanto elas custam, nada como visitar os sonhos através dos filmes. O grande ecrã, nos últimos tempos, tem-nos dado mais do que boas razões para saborearmos um pouco do que é a capital das luzes: "O Fabuloso Destino de Amélie", os dois filmes de Christophe Honoré, "Paris, Je t'aime", "2 Dias em Paris" ou o mais recente "Paris".

Todos eles, de uma forma mais ou menos declarada, incluem a cidade como parte da história. Neste "Paris", de Cédric Klapisch, transforma-se mesmo no ponto central que liga todas as personagens, o coração do filme. Com uma narrativa em mosaico, seguimos as aventuras e desventuras dramáticas de várias pessoas, unidas por esse factor tão simples, mas tão determinante. É como se o estilo de Robert Altman se tivesse fundido ao amor demonstrada por Woody Allen a Nova Iorque, em "Manhattan". Imaginem esse cenário e apreciem. Depois, voltem a pensar no mesmo, mas muitos furos abaixo em termos de qualidade, e têm "Paris". Uma homenagem ligeira, bem-humorada e calorosa, ideal para ultrapassar estes dias em que o frio aperta.

A personagem central é Pierre (Romain Duris, o menino bonito do cinema francês), um bailarino que descobre sofrer de uma grave doença no coração, que a qualquer momento o pode levar à morte. Confrontado com esta situação, e proibido pelos médicos de trabalhar, Pierre passa os dias em casa, a contemplar a vida dos transeuntes através da varanda da sala. A sua companhia principal companhia é a irmã, Elise (Juliette Binoche), que vive atormentada pelo facto de não ter grande sorte com o sexo oposto. Mas Pierre é apenas uma rampa de lançamento para todas as narrativas paralelas, porque como ele próprio experiência todos os dias, a vida lá fora não pára devido aos problemas de ninguém.

O problema é que nem todas as histórias têm o mesmo interesse. E as que nos colam ao ecrã acabam por saber a pouco, já que sofrem do problema de falta de tempo para se desenvolverem convenientemente - apesar de "Paris" durar aproximadamente 2h. Assim sendo, fica a amarga sensação de que falta sentimento ao filme, que com tantas personagens se torna desequilibrado e se perde em alguns momentos de aborrecimento, sem que ninguém perceba muito bem onde é que o realizador nos quer levar. Mas o filme tem ritmo, um elenco de luxo, algumas surpresas pelo caminho e um óptimo trabalho de fotografia, o que quase nos faz esquecer estas pequenos falhas.

E, acima de tudo, tem uma espectacular interpretação de Fabrice Luchini como Roland, um professor de história universitário apaixonado por uma das suas estudantes, Judith (Mélanie Verneuil). Roland merecia a completa atenção das duas horas de filme. Em tudo as suas acções e decisões, é ele que lança os foguetes, faz a festa e no final ainda apanha as canas. Atravessa uma crise de meia-idade e está mergulhado em angústias, neuroses e ideias disparatadas. Para mais vê no seu irmão, que tem a típica vida perfeita, em completo contraste com a sua personalidade, uma ameaça. Os principais momentos de humor são da sua responsabilidade, assim como os mais dramáticos - a forma como Judith interrompe a relação que mantinham é a cena mais cruel de "Paris". E a naturalidade e resignação com que Roland encara a rejeição e os contratempos, só isso é merecedor de uma visita a este filme.

Pena é, como já disse, que Cédric Klapisch não tenha aproveitado melhor as capacidades de Fabrice Luchini . O mesmo se aplica a Romain Duris, fantástico actor que fica muito aquém das suas capacidades, e cuja personagem nunca deixa de soar a cliché. A espaços, o argumento torna-se também demasiado simbólico e lamechas, um pouco ao estilo novelesco. Falta-lhe consistência, mas sobra-lhe vontade de mostrar alguma coisa. E no final, é impossível não sentir a melancolia no ar, enquanto Klapisch se vai despedindo com várias imagens de Paris e dos seus habitantes. Não é perfeito, longe disso, mas não deixa de ser uma interessante viagem ao mundo de pessoas normais, com problemas banais, que sofrem e amam conforme a vida o vai permitindo.


Classificação: 6/10

sábado, 13 de dezembro de 2008

Amália



Título Original: Amália, O Filme
Realização: Carlos Coelho da Silva
Ano: 2008

Segundo as informações veiculadas pela imprensa, "Amália" teve um orçamento a rondar os três milhões de euros, o mais caro de sempre na cinematografia nacional. Surgiu assim logo à partida como um projecto ambicioso, beneficiando também da vantagem de ir à boleia da imagem de um dos principais ícones do nosso país. Com uma forte tendência comercial e com o objectivo declarado de atingir os 200 mil espectadores, esperava-se que fosse uma boa oportunidade de conciliar o grande público com um cinema nosso, feito por nós e sobre a nossa gente. Esperava-se, mas não foi isso que aconteceu. Na verdade, é um filme sem ponta de sentido e incapaz de chegar aos calcanhares da grandeza da personagem que retrata. Daria vontade de rir, se não desse vontade de chorar o dinheiro do bilhete.

Quando se começa a construir um edifício pelo telhado, é garantido que mais tarde ou mais cedo irá ruir por completo. O mesmo acontece neste filme: com um guião de um amadorismo confrangedor, até patético, deita logo por terra qualquer tentativa de retirar algo de relativamente decente deste projecto. Diz aquela velha máxima do cinema que "é possível fazer um mau filme com um bom argumento, mas é impossível fazer um bom filme com um mau argumento". Se tivesse sido dada mais atenção a esta frase, se houvesse mais cuidado na elaboração de uma história com o mínimo exigível em termos de qualidade e densidade dramática, agradeceriamos imenso.

Não sei o que terá passado pela cabeça dos produtores para dar luz verde a um guião com tamanhas lacunas. Não sei, mas imagino. Parece-me que depois do sucesso de "O Crime do Padre Amaro", se criou a ilusão de que o público come tudo o que lhe é dado e no fim ainda se sai a rir. Basta pôr meia dúzia de actores conhecidos, um formato de telefilme que as pessoas já não estranham, fazer uma boa promoção do filme, se possível inserir um par de mamas e o retorno do investimento está garantido. Mas fazer bons filmes exige bem mais do que isso. E para se criar uma franja de público interessada e fiel, capaz de constituir um mercado para o nosso cinema, é preciso que este seja respeitado. No entanto, "Amália" é um autêntico atentado à inteligência do público. À primeira todos caem, à segunda cai quem quer e à terceira só quem é burro. A mim é que já não me voltam a apanhar numa destas.

"Amália" é um biopic sobre a vida excessivamente atribulada de uma das nossas principais artistas. Começa em Nova Iorque, em 1984, quando Amália, velha e isolada, se tenta suicidar atirando-se da janela do seu apartamento. Entretanto, vamos revendo os momentos mais marcantes da sua vida, começando pela infância, quando o seu espírito rebelde se começava já a demonstrar. Para além dos momentos de angústia em Nova Iorque, outra cena recorrente durante é o concerto de Amália no Coliseu no conturbado período pós-25 de Abril, onde enfrentou a fúria dos manifestantes pela sua alegada proximidade com o antigo regime.

Mas tudo é uma anedota pegada. Não existe uma linha narrativa que interesse tenha, uma personagem com quem possamos simpatizar. Os diálogos soam mais a falso do que o meu novo anel de ouro de 24 quilates, e os momentos embaraçosos repetem-se até à exaustão. A certa altura do filme a confusão é tal que já nem reconhecemos quem são as personagens nem como é que elas ali foram parar. E o pior é que Carlos Coelho da Silva e companhia não fizeram por menos: o filme tem a duração de mais de duas horas(!!!), vá-se lá perceber o porquê de sujeitar o público a tamanho teste à força de vontade.

E se o argumento é pior que mau, a realização também não se pode ficar a rir. A sonoplastia tem falhas de fazer arrancar os cabelos à força e alguns planos e sequências de imagem até provocam um arrepio gelado na espinha. Com tanto dinheiro envolvido, um pouco mais de talento era o mínimo que se podia exigir. Quanto aos actores, fizeram o que é possível: se o barco vai perdido no meio do Oceano, não são eles sozinhos que vão conseguir dar ao remo até à costa. Sandra Barata Belo tem uma participação positiva, assim como António Pedro Cerdeira ou Carla Chambel. Depois temos pormenores especialmente horripilantes de fazer cair o queixo de tanta gargalhada, como Ricardo Carriço com um sotaque brasileiro ridículo, ou uma pequena participação de João Didelet, com uma peruca da loja dos trezentos, a personificar Ary dos Santos. Já para nem falar da personagem de Salazar, sério candidato ao prémio de maior fanhoso do mundo. Ou então de um indivíduo de fato que assombra Amália e que supostamente simboliza a morte, mas que mais se assemelha ao homem da mercearia e que no final nem percebemos o que andou por lá a fazer.

Mas se fosse a listar todos os episódios inacreditáveis que "Amália" nos proporciona, não acabava este texto hoje. Salva-se o guarda-roupa, e digo isto só para mencionar algo de positivo no meio deste desastre. Para quem já viu não existe solução, mas quem não o fez, faça então o favor de poupar o dinheiro e o seu precioso tempo. "Amália" não dignifica Amália Rodrigues, nem o fado, nem o cinema e nem ninguém. Antes uma palhaçada qualquer com o Steven Seagal a aviar vinte inimigos de uma só vez.

Classificação: 1/10

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Contas à vida - 80's Para Além do Paraíso



Título Original: Stranger Than Paradise
Realização: Jim Jarmusch
Ano: 1984

O tempo muda tudo. É uma das maiores tragédias da vida. Na maior parte das vezes nem damos por a sua chegada, vem devagar, suavemente, mas quando nos apercebemos, quando finalmente parámos e olhamos para trás, já nada é igual. É como o Jerónimo de Sousa nos seus constantes ataques ao capitalismo: não perdoa. E se à coisa em que podemos confiar é que não pára nunca, nem para ninguém. Jim Jarmusch não é excepção. Em 1984, Stranger Than Paradise foi recebido em Cannes em apoteose e constitui-se como um marco do cinema independente - que viria a desenvolver-se exponencialmente nos anos seguintes, com nomes como Wes Anderson, Spike Lee ou Steven Soderbergh, entre outros. Tornou-se um clássico. Visto hoje em dia, num contexto diferente, o seu maior valor vem do facto de sabermos por antecipação que se tratou de um dos primeiros filmes a desbravar novos caminhos. As suas qualidades continuam intactas, é certo, mas não foram potenciadas pelos anos. É um producto de uma época, e torna-se difícil dar-lhe o devido valor quando não é visto na data certa.

Em Stranger Than Paradise a história não é importante. Longe disso. As personagens, os ambientes, até os silêncios, são o tema central. Os diálogos são escassos, os cortes raros, os movimentos da câmara quase inexistentes e a imagem a preto e branco. Todos as cenas são separadas através de um pequeno periodo em que o ecrã se mantêm preto, sem imagens. No total, existem quatro personagens. É um trabalho minimalista de Jarmusch, levando a peito a expressão popular "menos é mais".

E a verdade é que quase nada acontece durante todo o filme, que se encontra dividido em três segmentos. No primeiro, Eva (Eszter Balint) vem da Hungria para visitar o seu primo Willie (John Lurie), em nova Iorque. Willie não vê com bons olhos a chegada da sua prima, e faz de tudo para a fazer ela se sentir excluida dentro de sua casa. No entanto, conforme o tempo vai passando, Willie vai-se aproximando de Eva. Entretanto, Eva vai para Cleveland, onde fica a viver com a tia. Um ano depois, Willie e o seu amigo Eddie (Richard Edson) deslocam-se para Cleveland com o objectivo de a visitar. Na última parte, os três deslocam-se para a Florida para passar férias, onde os dois amigos deixam Eva sozinha e entregue a si própria, isto enquanto se concentram nas apostas de corridas de cães e de cavalos.

Em traços gerais é esta a história. Willie, personagem principal, passa o tempo deitado, ou sentado, ou a ver televisão enquanto come enlatados. Nenhum plano lhe parece suficientemente bom para o fazer levantar e sair à rua, nenhum sonho futuro o motiva. Eva e Eddie acompanham-no em tudo que propõe, principalmente com o objectivo de matar o tédio. É sobre esta melancolia que o filme se debruça, a inaptidão social destas pessoas, deslocadas e desprovidas de sentido do seu papel na sociedade, em se adaptarem e sentirem-se pertencentes a algo. O que as personagens fazem (ou, neste caso, não fazem) tem um sentido. E no fim, apesar de alguns momentos de reflexão e análise, descobrem que apenas andarem para chegar ao ponto de partida. Um Leopardo não pode mudar as manchas, mas não é por isso que desistem de o tentar fazer. O resultado é a frustração.

No entanto, a falta de desenvolvimento narrativo acaba por cansar, isto apesar da curta duração (1h30). Os ambientes inóspitos fornecem a noção da frieza e estagnação das personagens face ao mundo, mas são também demasiado fastidiosos para os espectadores. Escusado será dizer que não é um filme acessível a toda a gente. Requer estômago e força de vontade, mais ainda se nunca conseguirmos entrar no espírito que propõe. Jarmusch parece andar a levar-nos a lado nenhum, a mostrar-nos imagens isoladas de propósito. No final, podem enrolar tudo na mesma manta e encontrar algum sentido capaz de fazer apreciar a mensagem, seja ela qual for. Se não for o caso, é certo que vão dar o tempo por muito mal empregue. De qualquer forma, vale a pena arriscar e visitar uma das obras mais influentes dos anos 80.


Classificação: 5/10

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Margot e o Casamento



Título Original: Margot at the Wedding
Realização: Noah Baumbach
Ano: 2007

Desconfio que Noah Baumbach teve uma adolescência complicada. Ou então apenas tem uma obsessão mórbida pela crueldade em que se podem transformar as relações familiares. Seja de que maneira for, quem sai a ganhar é o público. "The Squid and the Whale", filme com contornos autobiográficos, surpreendeu pela refinada mistura de humor e drama usada para contar a história de dois irmãos apanhadas no meio do atribulado processo de divórcio dos pais. Foi o primeiro grande sucesso de Baumbach, depois de alguns filmes menores com que iniciou a carreira. O resultado foi uma (justíssima) nomeação para o Óscar de melhor argumento original, aliado a uma grande expectativa relativamente à próxima obra deste jovem realizador. Mas "Margot at the Wedding" está longe dos pergaminhos do seu antecessor. O que não constitui necessariamente um factor assim tão negativo, dado que "The Squid and the Whale", ainda que realizado com um baixo orçamento, é de um nível difícil de igualar.

Margot (Nicole kidman), uma escritora de sucesso, e o seu filho Claude (Zane Pais) deixam Nova Iorque para assistir ao casamento de Pauline (Jennifer Jason Leigh), a irmã com quem Margot mantém uma relação complicada - chegando ao ponto de não se terem falado durante anos. A razão concreta do desentendimento entre as duas nunca nos é revelada, mas não é difícil de imaginar que se tratou do rebentar de pequenas tensões acumuladas, sentimentos recalcados e invejas bem entranhadas no fundo da alma. O futuro marido de Pauline é Malcolm (Jack Black), um homem sem emprego estabelecido e com manias de estrela, que a certa altura afirma que ainda não se apercebeu que não é a pessoa mais importante do mundo. Resumidamente, está uns pontos abaixo de Pauline, e Margot não consegue entender o porquê de esta se ter decidido a casar com um homem que lhe parece um idiota.

"Margot at the Wedding" é uma espécie de Rambo, mas aqui a violência é puramente emocional e afectiva. As metralhadoras são substituídas pelos diálogos densos e pesados, os pontapés à meia volta pelos momentos de desespero e humilhação. Chega a ser penoso ver o desenrolar da tragédia de pessoas que embora se amem, deixam transparecer o pior lado do ser humano e acabam por ferir-se umas às outras, em alguns casos irremediavelmente. O problema é que, faltando algum nível de credibilidade e uma história bem construída, tanto drama acaba por soar a pretensioso e falso. Nem mesmo as intervenções de cariz humorístico de Jack Black chegam para aliviar o ambiente pesado, tendo até muitas vezes o efeito contrário - sentimos verdadeiro embaraço pela forma infantil como se comporta.
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Conforme o tempo e os dias vão passando, a reunião familiar torna-se cada vez mais tensa. Margot revela que está a repensar a relação com o seu marido, Jim (John Turturro), isto enquanto se vai atirando para os braços de Dick (Ciaran Hinds), um antigo namorado. No meio desta situação, e sem saber ainda de nada, está o filho adolescente, Claude. E é entre Claude e a mãe que se desenvolve a relação mais interessante, e ao mesmo tempo cruel, de todo o filme. Claude adora Margot, mas por sua vez ela parece decidida em não perder uma oportunidade de descarregar a sua fúria no filho. Seja pelo sua inabilidade, pelo seu ar amorfo, pela sua inaptidão em agir por conta própria. E quanto mais Claude se rebaixa e procura agradar a Margot, mais é humilhado. Típico exemplo de situações capazes de deixar marcas psicológicas prolongadas e deitar por terra a auto-estima de qualquer um.

O restante não tem tanto interesse e acaba por cair no vazio. Falta ritmo e substância para alicerçar as sucessivas crises de Margot ou as dúvidas de Pauline. E a certa altura já está tudo tão visto e monótono que parece que os créditos finais nunca mais chegam. As personagens são demasiado egoístas e neuróticas, o que torna os seus medos e vulnerabilidades seres estranhos para o público. Queixam-se, agridem-se, fazem as pazes e voltam a queixar-se, mas já ninguém na plateia está muito concentrado no que se está a passar. Foi maior a vontade de Noah Baumbach em contar uma história capaz de nos deixar emotivamente devastados do que o sucesso na sua concretização.

A influência da cinematografia europeia, nomeadamente a francesa, está bem presente. Estão lá o ambiente claustrofóbico, as personagens de classe média-alta, o realismo, os silêncios, a câmara intimista e as cenas recheadas de supostos simbolismos. Não fosse falado em língua inglesa e quase ninguém daria pela diferença. A comparação pode não ser a mais justa, mas é inevitável: o despretensiosismo de "The Squid and the Whale", sua principal arma, deu lugar a um exercício a espaços pseudo-intelectual. "Margot at The Wedding" está longe de ser uma perda de tempo, mas espera-se de Baumbach mais e melhor.

Classificação: 4/10

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Arte de Roubar




Título Original: Arte de Roubar
Realização: Leonel Vieira
Ano: 2008

Não é novidade para ninguém se disser que Leonel Vieira está longe, mas muito longe mesmo, de ser um realizador dotado de um grande talento. Com obras como "A Bomba" ou "Mustang" no currículo, é natural que deixe qualquer um com os pêlos em pé só de ouvir falar na estreia de um novo filme seu. Por essa mesma razão, e como pessoa avisada que sou, foi com expectativas baixas que entrei no cinema para ver "Arte de Roubar".

E fico feliz por poder afirmar que, afinal, não é tão mau quanto inicialmente pensei. Não é um filme inovador, não vai trazer novos caminhos para o cinema em Portugal e nem tão pouco me parece ter qualidade para, como parece pretender Leonel Vieira ao escolher realizar o filme em língua inglesa, triunfar no estrangeiro. Mas, no fim de contas, trata-se de um bom entretenimento, sem intenções de ser mais do que isso. Um guilty pleasure que se assume com gosto.

Chico Silva(Ivo Canelas) e Jesus Fuentes (Enrique Arce) são dois ladrões sem sorte e desajeitados que vêem todos os seus planos "perfeitos" saírem furados, por uma razão ou outra. Desmotivados e sem rumo certo, o destino acaba por entregar-lhes de bandeja o golpe perfeito: roubar um quadro de Van Gogh, no valor de cinco milhões de euros, da mansão de uma velha condessa. Isto com a preciosa colaboração do mordomo da condessa (Nicolau Breyner), irritado por ter sido esquecido na recente herança esta elaborou. Mas nem tudo é tão simples como parece, e os dois acabam envolvidos acidentalmente num esquema maior.
Leonel Vieira confessou ser um fã devoto de Tarantino e dos irmãos Coen, e não escondeu a influência destes na sua obra. Mas nem precisava de o fazer, já que é bem visível para os espectadores familiarizados com a filmografia destes realizadores, ou até de Robert Rodriguez e Guy Ritchie, de onde surgiu a ideia para "Arte de Roubar". O espírito nonsense, a comédia negra, os diálogos rápidos e atrevidos, munições disparadas como se não houvesse amanhã, confusões e desentendimentos. Está lá tudo.

O modelo, verdade seja dita, está gasto, roto e tem buracos. E muitos foram os que anteriormente, e com bem melhores resultados, o interpretaram. Chamem-lhe homage, tributo, pastiche ou o que quiserem. Para mim não passa de uma aberrante falta de ideias inovadoras, que culminam numa cópia despropositada e vazia de métodos que até já cheiram a mofo. O guião, escrito por João Quadros com a colaboração de Roberto Santiago, é mesmo o elo mais fraco pelo qual acaba por ir cedendo o restante. Falta-lhe graça, tem falas medíocres, pouca energia e está cheio de momentos de disparate que roçam o embaraçoso. De que me lembre, só uma coisa tem em doses generosas: clichés. Se for apreciador...

Mas "Arte de Roubar" também tem os seus pontos fortes. A começar pelas interpretações, com Ivo Canelas e Henrique Arce a conseguirem, com pouca matéria-prima, construir personagens com substância e estilos próprios. Flora Martinez e Soraia Chaves, nem que aparecessem só para encher o olho com tanta beleza, já faziam muito. Mas são ainda duas actrizes de talento, e Soraia Chaves, embora num papel mais discreto - e com mais guarda-roupa - do que o habitual, fica extremamente bem na fotografia. O resto é ver o desfilar de personalidades bem conhecidas do nosso pequeno "ShowBiz" em papéis secundários, como Aldo Lima e Pedro tochas.

A realização de Leonel Vieira é de boa qualidade, filmando um Portugal de vastas planícies, praças de touros e empregadas de mesa desgrenhadas. Tudo em tonalidades de amarelo, que mais fazem lembrar uma tarde de verão tórrida no México. Consegue imprimir ritmo à história e ela flúi naturalmente. Para mais, não existe nenhum daqueles erros de fotografia e sonoplastia de palmatória, que tantas contribuem para transmitir uma imagem de falta de meios e de falsidade ao nosso cinema. Os planos são bem estudados, os locais bem escolhidos e não fosse um ou outro momento em que as cenas de acção poderiam ser mais arrojadas, estaria quase perfeito.

A banda sonora, da autoria de Paulo Furtado (Legendary Tigerman), foi uma óptima escolha. Quanto à questão do filme ser falado em inglês, que está a levantar algumas dúvidas e a suscitar críticas, não penso que seja relevante. Com certeza que, falado em português, teria outro sabor. Mas temos de fazer um esforço para compreender que o nosso mercado é pequeno e as aspirações de Leonel Vieira e companhia são legítimas. Num filme tipicamente comercial, que é mais um entre milhares, pode ser esse facto que lhe dê o lucro extra que as nossas produtoras bem precisam. Esperemos para ver. No geral, podemos considerar que "Arte de Roubar" é um filme mau, mas se for visto despreocupadamente e sem preconceitos, pode ser divertido. Vão ver que andam por aí coisas bem piores.


Classificação: 3/10

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Contas à Vida - 80´s Os Dias da Rádio



Título Original: Radio Days
Realização: Woody Allen
Ano: 1987

Corro o sério risco de, um dia destes, ficar sem adjectivos para descrever o talento de Woody Allen. Nada mais merecido. Com uma longa filmografia, não existe um único filme na lista que não seja, à sua maneira, memorável. Radio Days não foge à regra, até porque esta difere de todas as outras num pequeno pormenor - até hoje, ainda não tem excepção. Desta feita, Woody Allen presta um tributo aos tempos dourados da rádio, antes de a televisão se tornar o grande meio de comunicação de massas.

É um olhar puramente nostálgico aos seus tempos de juventude, quando famílias inteiras ainda se reuniam nas salas e partilhavam o prazer de ouvirem rádio juntas. O jazz dominava as emissões e perfurava o silêncio dos lares, as pessoas deixavam a imaginação correr e sonhavam com o glamour das estrelas, com o mundo fantástico e misterioso que existia por detrás do transmissor.

Claro está que, na maior parte das vezes, esse "mundo fantástico" não era tão fantástico assim. Joe (Seth Green), alter-ego de Woody Allen, é uma criança pertencente a uma família de classe média-baixa. Para desespero da família, que não aprova o tempo excessivo que passa a ouvir rádio, Joe não perde as aventuras do seu herói, o Masked Avenger, que visualiza como um homem alto, forte e robusto. Na realidade, a voz por detrás do Masked Avenger é a do atarracado e careca Wallace Shawn. Mas enquanto a televisão mostra, a rádio deixa para a imaginação. É essa a sua beleza.

O filme não apresenta a estrutura narrativa a que estamos habituados, isto é, uma história com princípio, meio e fim. O que nos mostra consiste em episódios caricatos e isolados, situações sem ligação especial entre si mas onde a rádio tem um papel fundamental, nem que seja como pano de fundo. A acção centra-se principalmente na família de Joe e nas voltas e reviravoltas na vida de Sally White (Mia Farrow), uma aspirante a estrela de rádio sem o mínimo de talento nem grande inteligência. Tudo isto em época de grande incerteza, fruto do eclodir da 2º Guerra Mundial.

Como Woody Allen (narrador) faz questão de frisar logo no princípio, são as memórias que guarda dessa época que transporta para este filme, coincidam ou não inteiramente com a verdade dos factos. Não é por isso de estranhar o apelo nostálgico que tem sempre presente, o que aliado à magia e beleza de certos planos de Nova Iorque, nos faz desejar recuar no tempo para fazer uma visita a esse mundo mais simples.

Radio Days tem tantas personagens e histórias paralelas que nem vale a pena tentar descrevê-las. Vale a pena, no entanto, dar uma espreitadela à qualidade dos actores envolvidos: Diane Keaton, Jeff Daniels e Danny Aiello, entre outros. Trata-se uma comédia leve e cativante, sem grandes preocupações para além do entretenimento, e onde as pessoas e os sentimentos têm lugar de destaque. O trabalho de realização é simplesmente grandioso, ainda mais tendo em conta o número de cenas que requerem produções elaboradas e minuciosas, com imensos cenários, actores e figurantes envolvidos.

O resto é o que Woody Allen nos tem habituado. Diálogos hilariantes e gargalhadas garantidas, isto sem esquecer o lado emocional que atravessa, meio escondido, todo o filme. O romantismo da cena final, no telhado de um prédio em Nova Iorque iluminado por um néon, é capaz de convencer o mais feroz dos críticos. E é mesmo esse o principal trunfo do filme, o final. De uma maneira brilhante, Woody Allen diz adeus a toda uma época em que cresceu, ouvindo as vozes do rádio desvaneceram-se ao longe. Até eu, que nasci bem mais tarde, senti saudades desses dias.

Classificação: 8/10

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Estrela Solitária



Título Original: Don't Come Knocking
Realização: Wim Wenders
Ano: 2006

Em 1984, Wim Wenders e Sam Shepard uniram esforços para uma aventura épica pelas paisagens desérticas e áridas da América profunda. "Paris, Texas", magnífico filme sobre um homem obrigado a lidar com as feridas profundas de um passado cheio de sonhos perdidos, saiu de Cannes com a palma de Ouro. Vinte e dois anos depois, a receita repete-se em "Don´t Come Knocking", com a dupla Wenders/Shepard a procurar o brilho de outros tempos. O resultado é em vários aspectos idêntico, repetindo-se temáticas e ambientes, mas o "refogado" já não é da mesma qualidade.

Howard Spence (Sam Shepard) é um outrora famoso actor de westerns, cuja popularidade se perdeu com o passar dos tempos e com o consumo abusivo de álcool, entre outros vícios. O típico "has been". Durante a gravação de um filme que, pela amostra, tem todas as condições para se tornar mais um falhanço numa carreira que se arrasta, Howard decide abandonar as gravações e partir em busca de algum sentido na sua vida. No seu estilo "cowboy", parte num cavalo com direcção incerta, deixando os produtores do filme à beira de um ataque de nervos.

Sem destino certo na fuga, Howard pensa ser a altura ideal para visitar a mãe (Eva Maria Sain) que já não vê à cerca de trinta anos, numa cidade perdida no Nevada. E é a mãe que lhe revela, inocentemente, que tem um filho já adulto de uma relação antiga, mantida durante a gravação de um filme em Montana. Incapaz de ignorar este facto, Howard parte em busca do filho e da antiga namorada.

Don't Come Knocking é um filme cuja acção de passa no presente, mas tudo evoca tempos antigos. Desde os cenários desérticos, passando pelo ritmo lento a que as personagens se movem ou ao livro de recortes que a mãe de Howard guarda com as notícias sobre o filho. Numa das melhores cenas do filme, Howard senta-se junto à janela, com o néon gasto de um casino a brilhar sobre ele. É deste material que o filme é feito, personagens gastas em busca de bocados do passado que parecem cada vez mais distante.

Entretanto, Howard encontra o filho Earl (Gabriel Mann), a antiga namorada Doreen (Jessica Lange) e ainda uma outra filha de que desconhecia a existência, Sky (Sarah Polley). Mas as coisas não estão fáceis para o seu lado. Com a excepção de Sky, que sonha em conhecer o pai e deambula pelo filme sempre com um ar inocente e conciliatório, nem Earl nem Doreen vêem com bons olhos a visita surpresa de Howard. O resto do filme contempla os esforços de Howard para se reconciliar com a família, e pouco a pouco vai conseguindo atingir os seus objectivos. Mas a verdade é que não existem esforços suficientes que façam o tempo andar para trás. Quando Howard, numa tentativa de encontrar alguma estabilidade na sua vida, pergunta a Doreen se quer voltar para ele, a gargalhada que obtém como resposta é esclarecedora.

O trabalho de fotografia é fantástico, retirando por vezes o foco às próprias personagens. A beleza visual confere-lhe um carácter romântico e nostálgico que, numa obra claramente imperfeita e irregular, é meio caminho andado para se apreciar o filme. O próprio facto de Sam Shepard ter passado tanto tempo a participar em filmes de qualidade duvidosa dá-lhe uma visão mais esclarecedora do que é sentir-se uma estrela fora do seu tempo. E essa experiência pode ter contribuído para a qualidade do guião que escreveu e da sua performance no ecrã.

Don´t Come knocking é capaz de nos entreter, mas incapaz de nos ligar realmente à história e às personagens. Será por certo rapidamente esquecido, se é que já não o foi pela maior parte das pessoas, mesmo as que o viram. Não deixa por isso de ser uma daquelas obras nostálgicas que, sem ser nada de espectacular, nos fazem passar um bom bocado na sala de cinema. Wim Wenders e Shepard nem parecem ter-se preocupado por aí além em fazer um filme perfeito, ou em fazer com que todas as cenas resultassem em cheio. E quem for também capaz de apreciar a imperfeição, não dará o tempo por perdido.

Classificação: 6/10

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Aquele Querido Mês de Agosto



Título Original: Aquele Querido Mês de Agosto
Realização: Miguel Gomes
Ano: 2007

Quem não tem cão caça com gato. Deve ter sido algo parecido que Miguel Gomes pensou quando, por dificuldades financeiras, se viu obrigado a adiar as filmagens deste filme - programado para ser uma ficção, com guião escrito e tudo - por tempo indeterminado. Pegou então numa equipa de produção e viajou para Arganil, com o objectivo de captar imagens que depois utilizaria para o filme propriamente dito. Mas as histórias que encontrou foram tão fantásticas que não podiam ficar de fora. Resultado: um filme onde o documentário se confunde com a ficção, e onde a própria equipa de filmagem e o processo de realização é mostrado por dentro. Pelo meio, já mal distinguimos se os actores estão a encarar uma personagem, se são eles próprios a falar. Uma autêntica manta de retalhos que, surpreendentemente, funciona muito bem. A necessidade aguça o engenho e, neste caso, o que poderia ser mais um filme sem notoriedade transformou-se, juntamente com Alice, no melhor filme português dos últimos tempos.

Aquele Querido Mês de Agosto é um filme tão tipicamente português como o bacalhau ou o azeite. É o retrato de uma das faces de Portugal, o Portugal do interior, profundo e esquecido. Em extinção. No mês de Agosto, os emigrantes regressam de França às suas terras de origem e multiplicam-se os bailaricos de verão, as festas e os namoros de ocasião. Foi isto que Miguel Gomes filmou e tão habilmente nos mostra. A primeira parte é quase exclusivamente constituída pela parte documental, com a introdução aos grupos de música ligeira (pimba é palavra odiada), às gentes e às histórias de Arganil, onde por vezes a verdade se mistura com o mito. Destaque para as aventuras de Paulo "Moleiro", o herói/bêbado local que todos os anos, por alturas do Carnaval, se atira da ponte, para delírio da população. Ou para o relato que uma habitante faz acerca da reacção assustada da população ao facto do namorado plantar tomates no jardim nu e de machado na mão.

Como documentário é formidável. Ouve as pessoas e transmite as suas histórias. Com planos longos e fixos permite-nos assimilar o ritmo a que os acontecimentos se desenrolam. Como tenho ouvido por aí, assemelha-se em certos aspectos a um episódio da liga dos últimos, onde com humor se procura o lado humano e caricato das pessoas. Mesmo para quem vive num contexto mais urbano e encara tudo isto com um olhar exterior, é impossível não sentir proximidade e ligação com a realidade destes habitantes, porque são também as nossas raízes.

A meio do documentário Miguel Gomes vai inserindo partes do processo de rodagem e da ficção, numa estrutura típica de filme dentro do filme. Aqui, no entanto, as coisas já não correm tão bem. Hélder (Fábio Oliveira) e Tânia (Sónia Bandeira) são dois primos que pertencem a uma banda de música ligeira e se partilham um amor secreto. Mas os obstáculos acumulam-se: o pai de Tânia não vê com bons olhos o facto de ter de dividir a filha com outro homem e os pais de Hélder pretendem levá-lo consigo para viverem juntos em Estrasburgo. Os actores (não profissionais), com excepção de Sónia Bandeira, não são nada de especial e a história vai-se arrastando sem grandes motivos de interesse ou carga dramática. Apenas por uma altura, numa sessão de música ao desafio onde as acusações são proferidas em forma de verso, parece que o rumo vai alterar, mas logo depois volta ao estilo "não anda nem desata".

Outro dos factores negativos é a duração. Cerca de duas horas e meio é um completo exagero e, embora os minutos passem relativamente bem, no fim torna-se cansativo e monótono. Um pouco mais de trabalho de tesouro na pós-produção só traria vantagens. Nada que estrague o trabalho anterior, mas é um erro que se repete por demasiadas vezes . Um dos principais objectivos da arte, no meu entender, deve ser o de não aborrecer. Passar as duas horas só se houver óptimas razões para isso. E aqui elas não existem.

Estivesse a ficção ao nível do documentário e tínhamos em mãos uma obra memorável. Não quer isto dizer que seja dispensável e que o filme estaria melhor limitando-se ao documentário. A ficção desempenha a importante tarefa de nos fazer aproximar das personagens e criar empatia com a ruralidade de Arganil, até chegarmos ao ponto de darmos por nós a apreciar a música de Dino Meira. Se podia haver ainda alguma distância entre grande parte do público e a realidade representada, rapidamente desaparece.

Última nota relativamente às criticas de paternalismo e altivez citadina que o filme, e Miguel Gomes em particular, têm recebido. Que, num filme tão verdadeiro e de certa forma inocente e bem-intencionado, se consiga descortinar uma ridicularização e exploração de vidas alheias, diz mais sobre quem assim pensa do que sobre o filme em si. Como um amigo meu costuma dizer, é a velha questão da expressão "mimi apita aqui": só vê maldade quem quer e já tem o pensamento nisso. A todas essas pessoas aconselha um segundo visionamento do filme e pode ser que, encarando-o noutra perspectiva, descubram que é mais o que temos em comum do que o que nos distancia de Arganil.


Classificação: 7/10

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Bem-vindo ao Turno da Noite




Título original: Cashback
Realização: Sean Ellis
Ano: 2007

Não fosse a existência das chamadas comédias românticas "light", e o mundo era um lugar bem mais triste. E se se trata de filmes com genuína piada e originalidade, então o meu dia está ganho, independentemente de tudo o resto. É esse o caso de Cashback, estreia na realização de longas-metragens do realizador inglês Sean Ellis, aproveitando e expandindo a ideia de uma curta realizado pelo mesmo em 2004. Actores, história e até pedaços do filme são idênticos. A diferença, em traços largos, é só uma: a curta teve a honra de ser nomeada para os óscares, a longa, sem aspirações para mais, teve a honra de me proporcionar umas quantas gargalhadas de fazer doer a barriga. Sem dúvidas dois grandes feitos.

O filme abre com Ben Willis (Sean Biggerstaff) e a sua ainda namorada, Suzy (Michelle Ryan, aquela jeitosa da série Bionic Woman), a terem uma discussão tão feia que acaba com um candeeiro atirado à cara de Ben. Suzy depressa arranja outro ombro onde se consolar, mas Ben mergulha na piscina da frustração e da depressão. De tanta auto-análise e comiseração, deixou de conseguir dormir e ganhou mais oito horas por dia. Com falta de dinheiro e tempo a mais nas mãos, fez as contas e decidiu o mais lógico: trabalhar durante a noite, no caso num supermercado.

É aí que Ben, para fazer passar as horas, desenvolve a habilidade de parar o tempo (contraditório, não é?), e assim apreciar a beleza de cada momento e de cada segundo. Se ele realmente pára o tempo ou apenas imagina que o faz, o filme não esclarece muito bem , mas também não interessa nada. Na maior parte do tempo somos guiados pela imaginação de Ben, que nos apresenta, entre outras coisas, às belezas infinitas do corpo feminino. Quando congela o tempo, não há mulher que mantenha as roupas no sítio. Vamos indo que volta a colocá-las no sítio antes de fazer o tempo correr novamente.

Não quer isto dizer que se trate de um filme pornográfico . Pelo contrário, é um acto puramente artístico (Ben é pintor) e despretensioso, que entra bem no espírito do filme e serve ainda para entreter a vista. Cashback é uma produção britânica, e esse toque extra de humor cínico e inteligente, inserido no ritmo lento e pastoso do filme, faz toda a diferença. A parte dramática não funciona assim tão bem, mas é o suficiente para nos manter interessados na história e apreciar o restante, aproximando-se, especialmente na parte final, de um "feel-good movie".

E é nas personagens que está grande parte do segredo. O melhor amigo de Ben é um mulherengo, mas com pouca sensibilidade no trato com as mulheres. No supermercado, os seus colegas são, no mínimo, estranhos. Desde um chefe convencido, uma dupla que não pára de pregar partidas e inventar problemas e um empregado novo fanático por Kung-fu, parece não faltar nada. Tantas misturas provocam momentos hilariantes como um jogo de futebol que acabou 26-0, ou a forma como o rapaz do Kung-fu faz as limpezas ao chão. Mas é em Sharon (Emilia Fox), empregada de caixa, que se concentram as atenções de Ben e que está a cura para esquecer Suzy. Os dois vão desenvolvendo uma relação cada vez mais forte e o resto, o resto nem é preciso dizer que já foi visto em muitas salas.

Sean Ellis não se poupou em alguns efeitos visuais de aplaudir, mas nem eram precisos. Os actores estão fantásticos, em especial Ben, perfeito no papel de uma rapaz introvertido e com a cabeça noutro mundo. Cashback é desequilibrado e isso em muito se deve ao facto de excertos da curta serem introduzidos no filme, provocando abanões no tom e estrutura. Nada de grave. Felizmente Sean Ellis não caiu na tentação de fazer um filme intelectual e, aos poucos, foi cedendo aos momentos mais leves e despreocupados. E ao vermos o mundo através de Ben, também nós apreciamos a beleza em redor. Não se trata de uma obra-prima, mas quem gosta de filmes divertidos e agradáveis tem aqui uma excelente surpresa.


Classificação: 7/10

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Por Favor Rebobine




Título Original: Be Kind Rewind
Realização: Michel Gondry
Ano: 2007


Não só com as palavras Charlie Kaufman se escreve o talento de Michel Gondry. Esta é apenas a primeira das boas novidades que este filme nos traz. Be Kind Rewind deixa a imaginação e a nostalgia à solta, recordando-nos os nossos sonhos de criança e a ingenuidade de quem insiste em não deixar o tempo passar. Pelo menos, não sem dar luta. É delirante, hilariante e a espaços dramático e comovedor. Com o acento tónico na criatividade, mostra como com pouco é possível fazer-se muito. Após o fantástico e inigualável Eternal Sunshine Of The Spotless Mind, é de saudar o regresso à excelente forma de Michel Gondry. As comparações, no entanto, deixem-as por casa: trata-se de duas obras em quase tudo distintas.

A tecnologia atropela-nos a todos. O que hoje é bom, amanhã é obsoleto, o que hoje é verdade, amanhã pode muito bem ser mentira. De tantas mudanças e de tão veloz ritmo a que acontecem, por vezes só nos apetece pedir um desejo: que por uns instantes, pequenos que sejam, fique tudo na mesma. Com a entrada dos dvd´s no mercado, o VHS, rei e senhor durante os 80´s, viu os dias contados. No entanto, as memórias dos tempos de rebobinar cassetes antes de as entregar no videoclube, para evitar a multa, não desaparecem com tanta facilidade. É por essa razão que em Passaic, New Jersey, um pequeno clube de vídeo de bairro, o Be Kind Rewind, insiste em preservar a simplicidade. Antigo lar de um lendário cantor jazz, Fats Waller, cuja música e espírito ainda se sente no ar, dvd´por ali, nem sonhar em vê-los.

Mas nem tudo corre como previsto na Be Kind Rewind. O prédio onde se encontra necessita de obras urgentes e a câmara tem um projecto em andamento para se apropriar do prédio e destruir a loja, em detrimento de uma fachada mais moderna. Mr. Fletcher (Danny Glover), o dono, necessita de gerar lucros urgentemente para proceder às obras. Parte então numa viagem de reconhecimento das necessidades do mercado, analisando o porquê de não conseguir vendas significativas. Entretanto, Mike (Mos Def), o empregado, fica encarregue de gerir o negócio. Simples e inocente, procura reunir todos os esforços para não desiludir Mr. Fletcher, mas o azar parece destinado a tramá-lo.

Jerry (Jack Black) é o mecânico local, ligeiramente maluco e com propensão para os desastres. Paranóico com a rede de cabos de alta tensão na cidade, que pensa estar a controlar-lhe a mente, acaba por apanhar um choque eléctrico ao tentar desligá-la. Magnetizado, apaga inadvertidamente todas as cassetes de vídeo na Be Kind Rewind, para desespero de Mike. E quando Miss Falewicz (Mia Farrow), amiga de Mr. Fletcher e uma cliente habitual, pretende alugar o filme Ghostbusters, só lhes sobra uma solução: pegarem na câmara e filmarem-no eles mesmo. Com sorte, pensam, ela nem dá pela diferença.

É a partir deste momento que a verdadeira loucura se inicia. Todos os meios valem, qualquer pessoa é um actor. “Driving Miss Daisy,” “Rush Hour 2” ou o "Rei Leão". O importante é acabar as filmagens a tempo e horas. Mais espectacular ainda é que é visível que Jack Black e Mos Def estão realmente a divertir-se com tamanha insanidade. Com a ajuda de Alma (Melonie Diaz), uma empregada da lavandaria arrancada à força do trabalho para as filmagens, a reencenação de filmes clássicos parece não ter fim. Por estranho que pareça, os filmes são um sucesso e Mike e Jerry tornam-se as estrelas locais.

Em certos aspectos, Be Kind Rewind é uma fábula enternecedora, um reviver dos tempos do VHS, em que os filmes se tornaram acessíveis e serviam como um meio de união entre as pessoas, de imaginação e de escape. É uma luta contra o tempo, que as personagens sabem perdida, mais cedo ou mais tarde. O que não as faz desistir, mas aprender a aproveitar o que resta. Até o título, para os mais distraídos, chama para tempos idos: Be Kind Rewind.

O espírito é de diversão, a pura e simples diversão. É o que o cinema deve ser e o que importa para as pessoas. Acima de efeitos especiais, argumentos complicados ou orçamentos chorudos. Quem adora cinema, quem cresceu a ver cinema, vai de certo identificar-se com o filme e perceber do que estamos a falar. Michel Gondry, de quem sou fã mais que confesso, volta a criar um ambiente de magia narrativo e visual que, actualmente, é único. Outra coisa que o cinema deve ser, único.

Com um equilíbrio incrivelmente conseguido em termos de humor e nostalgia, é capaz de, num momento, nos fazer rir à gargalha de invenções tão geniais e amadoras como o raio laser dos Ghostbusters feito de serpentinas, e de seguida, nos mostrar como a vida desafia cruelmente os que se recusam a obedecer às leis do tempo. O ponto de vista inocente das personagens aquece-nos o coração e faz-nos sentir parte da comunidade, e conseguir ver a cena final sem nos deixarmos comover, por pouco que seja, é digno de um rochedo centenário e bem fixo à terra. Deixar passar este filme é um pecado que, acreditem em mim, não querem cometer. Pelo menos se adoram cinema.

Classificação: 10/10

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Odete




Título Original: Odete
Realização: João Pedro Rodrigues
Ano: 2005

Embora por vezes a qualidade deixe um pouco a desejar, é sempre com entusiasmo e expectativa que acompanho o trabalho dos novos nomes do panorama cinematográfico em Portugal. Até ver Odete, desconhecia por completo as obras de João Pedro Rodrigues. Depois de ver Odete desejei que esse desconhecimento se tivesse mantido por muito mais tempo. Confessa que nem sei muito bem por onde começar a falar deste filme, tal foi o estado de perplexidade em que fiquei após o final. Já sabia à partida que se tratava de um filme estranho e fora do comum, mas até a imaginação, pelo menos a minha, tem limites.

Filme sobre personagens cuja sanidade mental já conheceu melhores dias, dá-me ideia que tamanha insanidade estendeu-se também a quem escreveu o guião, e a quem o leu e achou que estava ali uma ideia que valia a pena financiar e levar para a frente. Odete é uma obra mal realizada, pretensiosa, sem densidade dramática, sem diálogos dignos desse nome, e a lista podia continuar quase indefinidamente, não fosse o facto de se tornar fastidiosa. Não é por certo desta forma que o cinema em Portugal vai ganhar uma nova dimensão e outra relação com o público.

O filme abre com um beijo apaixonado entre um casal de namorados homossexual à porta de uma discoteca em Lisboa. Pedro e Rui comemoram um ano de namoro, e como prenda celebram a data com um dos diálogos mais forçados e vazios de sentido de que tenho memória. O guião não ajuda, é certo, mas a qualidade dos actores (Nuno Gil e João Carreira) é de deixar qualquer um com os cabelos em pé. Após trocarem juras de amor para sempre, Pedro pega no carro e tem um acidente logo à segunda curva, acabando morto em cima do capot, para desespero de Rui. Ainda a procissão vai no adro, e a vontade é já a de virar costas ao filme.

Se as coisas estavam más, quando Ana Cristina Oliveira (a Odete do título) entra em cena ficam ainda piores. Com uma falta de jeito natural para a representação, não existe uma fala, uma expressão da sua face que consiga reflectir sentimento algum. Tudo é mecânico e artificial, restando o facto consolador do seu papel não exigir muito mais do que deambular sem sentido pelo cemitério e pelo quarto do falecido Pedro. Mas apesar de tudo Ana Oliveira não deixa de ter um ponto a seu favor: no meio deste desastre, ainda esteve bem longe de ser o pior elemento.

Adiante. Odete é uma empregada de supermercado, daquelas que passeiam de patins pelas prateleiras e andam de caixa em caixa a resolver os problemas com os códigos de barras. Desesperada por ter um filho, tenta convencer o seu namorado (seríssimo candidato a pior actor do mundo) a ser pai. Perante a relutância deste, Odete tem um ataque de histeria, assim de repente e vindo do nada, e expulsa-o de sua casa, acabando a relação. É a partir deste momento que os problemas psicológicos começam a surgir em força. Apesar da relação entre Odete e Pedro se limitar ao facto dos dois viverem no mesmo prédio, Odete fica estranhamente e doentiamente obcecada por ele. O resto são diversas cenas intermináveis onde Odete ora se atira para cima do caixão pronto a enterrar de Pedro, ora lhe retira a aliança do dedo durante a cerimónia de corpo presente, ora passa os dias em frente à sua campa a olhar o horizonte. Como cereja no cimo do bolo, ainda está convencida de que está grávida de Pedro. Na realidade não está, trata-se apenas de uma gravidez histérica.

Entretanto Rui também está com graves problemas em aceitar a morte de Pedro e, depois de muita dor e choro, tenta o suicídio. Um pequeno detalhe impediu-o de ter sucesso: apenas cortou um dos pulsos. Através de situações totalmente inverosímeis Odete e Rui acabam por estabelecer um laço entre eles, sempre com Pedro como base. E a história fica-se por aqui, se é que lhe podemos chamar história. Sem o mínimo nexo e com personagens estereotipadas e desinteressantes, para fazer um elogio, arrasta-se em sequências patéticas cujo sentido ninguém entende, até chegarmos ao ponto em que torcemos para que as tentativas de suicido tenham de facto sucesso.

Mas o ramalhete não ficava completo sem as cenas de nudez e de sexo completamente gratuitas com que somos brindados. Se as personagens são masculinas, podem ter a certeza que passear por casa de pénis a dar-a-dar é a sua actividade favorita. Já Ana Oliveira tem muito mais cuidado relativamente ao que tem (ou não) vestido. A cena na sauna, onde um homem começa a apalpar as nádegas de Rui e acaba a fazer-lhe sexo oral, é de deitar por terra qualquer ideia de seriedade e mergulhar fundo no ridículo. E o final, com Odete montada em cima de um Rui totalmente nu a simular uma sessão de sexo anal, é digna de comediantes como Ricky Gervais ou Jerry Seinfeld. Se para mais não dá, ao menos umas boas gargalhadas estão garantidas.

Em Odete a falta de talento é visível em quase todos os aspectos. Em certas alturas torna-se deprimente de tão mau, noutras apenas aborrece e noutras ainda permite rir de tamanha falta de sentido. Nunca, em momento algum de cena alguma, nos faz preocupar com a história, as personagens ou o que seja que se está a passar no ecrã. Bom exemplo de um filme "artístico" e snob, que deseja ser mais do que pode e acaba por se estatelar forte e feio no meio do chão. Para quem viu já não há solução, quem não viu que siga o meu conselho: fujam a sete pés.


Classificação: 1/10

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Destruir Depois de Ler




Título Original: Burn After Reading
Realização: Ethan Coen, Joel Coen
Ano:2008


Woody Allen, no seu mais recente livro de crónicas humorísticas,"Pura Anarquia", conta a história de um homem com tanto sucesso na adaptação de histórias para o palco que um belo dia, de tão confiante que estava nas suas capacidades, caiu no cúmulo de adaptar a lista telefónica. Desconheço se os irmãos Coen têm em mente tal projecto, mas o restante encaixa na perfeição: parece que não existe nada que estas duas mentes não consigam transformar em cinema de primeira categoria. Depois do estrondoso sucesso de "No Country for Old Men" (retrato impiedoso e cruel da espécie humana), grande vencedor dos Óscares do ano transacto e que só por pouco não obrigou os Coen a alugar uma carrinha de mudanças para transportar tanta estatueta, "Burn After Reading" surge como um purificador do ambiente. Comédia deliciosa e estonteante, tem também por objectivo refrear os ânimos e recarregar baterias.

Mas o facto de terem optado momentaneamente por outra direcção não significa falta de cuidado ou qualidade. Embora "Burn After Reading" não seja, nem de perto nem de longe, uma das melhores obras dos Coen, é sem dúvida um enorme prazer. Tem diálogos inteligentes, um elenco fantástico e personagens extremamente bem construídas, que conseguem retirar dos actores todas as suas qualidades (caso óbvio de Brad Pritt, a personificar uma personagem completamente aluada e hiperactiva). É uma comédia, mas como acontece na maior parte dos casos em que nos referimos aos Coen, também não é bem comédia, é mais que isso. Tem a sua dose de thriller e, em certos aspectos, é mesmo um filme triste e deprimente, capaz de mostrar como as pessoas podem ser patéticas e rancorosas . A associação não tem grande base, mas como a minha mente vagueia em demasia, ao ver este filme lembrei-me de "Short Cuts", do falecido Robert Altman: toda a gente mente, engana, tem vícios, tiques, passados duvidosos e segredos por revelar.

Contar a história é um exercício condenado ao fracasso. Com um argumento que se baseia em reviravoltas e mal-entendidos, enrola-se em si próprio de tal maneira que se desviamos a atenção do ecrã por uns segundos arriscamo-nos a já não perceber o que se está a passar. Fiquemo-nos pelo princípio. Osborne Cox (John Malkovich) é uma analista da CIA que foi recentemente despedido e decide escrever um livro com as suas memórias, contendo passagens envolvendo a própria CIA. Katie (Tilda Swinton) é a sua mulher, mas o que ele não sabe é que ela está secretamente a planear o divórcio, por estar apaixonada pelo seu amante, Harry Pfarrer (George Clooney). Katie rouba do marido o CD que contêm o ficheiro com o seu livro de memórias, e por algumas voltas do destino este vai parar às mãos de Chad (Brad Pitt), um treinador de Fitness num ginásio. Chad pensa ter descoberto segredos de estado e com a cumplicidade de Linda Litzke (France McDormand), que necessita de dinheiro para cirurgias plásticas, vão chantagear Osbourne Cox e pedir-lhe uma elevada soma de dinheiro em troca do CD. O que eles não sabem é que as informações do CD não são tão confidenciais quanto isso.

Confusos? E isto, como referi, é só o princípio. O resto descubram por vocês, e garanto que vale a pena. De um tom inicial leve e jovial, o drama vai-se adensando com o passar dos minutos, até chegar um ponto em que as situações são cómicas, mas são também tão tristes que nem dá grande vontade de se estar bem-disposto. É aqui que está o segredo e onde se vê quem é bom: de uma comédia leve começa-se, subtilmente, a escavar mais fundo e a encontrar outros pormenores mais sérios. Os Coen, com uma apropriação tão pessoal da obra, vão com certeza fazer as delícias de todos aqueles que consigam embarcar na maré deste "Burn After Reading". Para os que vão ficar de fora, que não devem ser muitos, contem com hora e meia algo aborrecida.

Último destaque para os actores envolvidos. Não existe uma única personagem que não seja uma delícia, uma única performance mais fraquinha. De Brad Pitt já falei. John Malkovich é um falhado que está a um pequeno passo de perder as estribeiras; Geoge Clooney é um mulherengo charmoso e convencido mas que tem uma existência patética; Frances McDormand é uma mulher inocente que apenas quer melhorar a sua imagem para agradar aos homens, mas que não tem a mínima noção das consequências dos seus actos. E a lista podia continuar quase infinitamente.

É um Coen menor, é certo, mas não só de obras-primas se faz uma carreira de respeito. Se não se deslocarem para o cinema com a expectativa de ver um "No Country For Old Men" parte dois, é quase certo que vão dar por muito bem empregue o dinheiro. A não perder.

Classificação: 7/10

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Juno




Título Original: Juno
Realização: Jason Reitman
Ano: 2007

Juno, filme saído do circuito independente americano, foi a grande surpresa de 2007. Produzido com um baixo orçamento, atingiu lucros milionários e foi uma das presenças mais notadas na cerimónia dos Óscares, com nomeações para melhor actriz, melhor realizador, melhor argumentista e melhor filme. De certa forma, um percurso que em muito faz lembrar o conseguido por Little Miss Sunshine, em 2006. E até no estilo utilizado os dois filmes são semelhantes, tratando-se de comédias dramáticas ternurentas, que nos fazem aproximar das personagens e acabam por nos deixar o coração mole. São os denominados "feel-good movies". Mas se em Little Miss Sunshine o hype foi um pouco exagerado, em Juno justifica-se totalmente. É, em vários aspectos, um filme superior e um exemplo de como se pode ter sucesso a realizar seguindo prioritariamente o instinto e as paixões.

Quero com isto dizer que embora Juno não seja tecnicamente perfeito, tem um coração tão grande que nos faz esquecer o resto. Ou dizendo melhor, ainda bem que não é perfeito, porque são as pequenas imperfeições que lhe dão a piada que tem. Ver Juno assemelha-se, em certos aspectos, a assistir a uma prova de natação sincronizada nos jogos olímpicos: parece tudo tão simples, mas funciona tão bem. Estranha analogia, eu sei, mas é a que melhor me ocorre para definir o porquê de Juno ser tão bom. Embora não seja uma obra-prima nem contenha elementos de realização capazes de fazer corar Martin Scorcese, também ninguém se preocupou minimamente em que assim fosse. Não é esse, nem de perto nem de longe, o objectivo de Reitman e companhia. A prioridade é dada à simplicidade, ao humanismo e ao amor.

E funciona tão bem, tão bem que é impossível acabar de ver este filme e não sentir, nem que só por uns minutos, que o mundo é um lugar onde predomina a alegria. É também para isto que serve o cinema, para nos proporcionar momentos leves e descomplexados, que funcionem como um pequeno escape da realidade. Ellen Page protagoniza o papel de de Juno MacGuff, uma jovem rebelde e desenrascada de 16 anos que, num golpe de azar, engravida depois de ter relações sexuais com o seu melhor amigo, Paulie (Michael Cera). E para engravidar só foi preciso tentar uma vez, uma tarde de férias onde o tédio reinava. Apanhada de surpresa, Juno procura uma clínica para efectuar o aborto, mas à última da hora a sua consciência não a deixou continuar. Mesmo tendo em conta todas as dificuldades, Juno decide levar a gravidez até ao fim. Durante este processo Paulie, envergonhado e introvertido, não tem voto na matéria.

Juno, embora decida levar a gravidez até ao fim, considera-se muito nova para cuidar de um bebé. Com a ajuda da sua amiga Leah (Olivia Thirby), que lhe sugere a opção de dar o filho, procura no jornal anúncios para pretendentes a pais adoptivos (pelos vistos na América isto é possível). E encontra Vanessa (Jennifer Garner) e Mark (Jason Bateman), um casal que vive numa típica casa "bonitinha" dos subúrbios e que deseja ardentemente ter um filho. Ou melhor, Vanessa deseja, porque Mark, cuja mentalidade parou pelos 80's, vai revelando algumas reservas.

Daí para a frente seguimos o evoluir da gravidez de Juno e as dificuldades e dúvidas inesperadas que, aproximando-se o dia do parto, vão surgindo na sua cabeça. A sua leveza e ingenuidade inicial ao lidar com toda esta situação vai dando subtilmente lugar a emoções sérias sobre as dificuldades que esta implica. E entre sequências genuinamente engraçadas, diálogos inteligentes e one-liners hilariantes e perfeitos para a personagem de Juno, somos obrigados a ceder e a comover-nos com a seriedade do momento que vive o dos que se aproximam, em especial o de dar o bebé aos pais adoptivos.

Dentro do ecrã, Ellen Page faz a festa, atira os foguetes e só não apanha as canas porque todos os outros actores assimilaram muito bem os seus papéis e cumpriram na perfeição. Jason Reitman também cumpre na realização, acertando em cheio no tom necessário para o filme e conseguindo demonstrar uma maturidade e segurança que só podem augurar coisas boas para o futuro. Mas apesar de tudo isto, o destaque tem de ir direitinho para a argumentista, Diablo Cody. Há uns anos trabalhava como stripper, hoje tem um Óscar em casa a enfeitar a estante. No seu primeiro guião, Diablo conseguiu um impressionante equilibrar entre subtileza, humor, ingenuidade e até pretensiosismo. Está tudo lá, o bom, o mau, e o mais ou menos. Com odesenvolvimento de narrativa clássico dos filmes de Hollywood, Diablo Cody mostra que é fácil ser-se genial sem precisar de se inventar nada.

Analisando bem, é um filme honesto sobre como encontrar o nosso caminho e o valor das relações humanas e do amor. Quem o acusou, entre outras coisas, de ser um panfleto anti-aborto simplesmente não viu Juno ou não sabe do que está a falar. A banda sonora é , no geral, óptima, mas atenção especial para o momento em que toca "Sea of Love", cover da autoria de Cat Power, numa altura crucial e em que as emoções estão mais ao flor a pele. Se existe perfeição, garanto, ela está nessa sequência. O veredicto para mim é simples: por mais que procurem, dificilmente encontram por aí melhor.



Classificação: 10/10

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

O Sabor do Amor




Título Original: My Blueberry Nights
Realização: Wong Kar Wai
Ano: 2007

De falta de pontaria Wong Kar Wai não se pode queixar. Logo no seu primeiro filme rodado na América, com um elenco inteiramente americano e inglês e falado em língua inglesa, espalhou-se totalmente ao comprido. Os antecedentes de Kar Wai, esses, não enganam: o homem sabe mesmo o que faz. Com um estilo visual único, é um especialista em observar a vida através de momentos, texturas, neons perdidos ou slow motions cobertos por músicas nostálgicas (quem não se lembra da banda sonora de Nat king Cole, em "In The mood for love"). O controlo da linguagem visual está-lhe no sangue, não deixa um plano por pensar, baralha as imagens e volta a dar, sabe mexer-nos os sentimentos. A principal força de Kar Wai, que o tornou num ícone do cinema, é essa mesmo, a de contar histórias por fragmentos dispersos, libertos, poéticos.

É por isso natural que as expectativas fossem altas, mas infelizmente não se vieram a confirmar. Por muito que custe aos fãs do realizador chinês (nos quais me incluo) admitir, "My Blueberry Nights" é um filme muito fraquinho. Se calhar muito fraquinho até é um elogio. As características dos seus filmes anteriores estão todas lá: uma história melancólica, personagens solitários em sofrimento, amores mal resolvidos, uma atmosfera nostálgica, olhares que substituem as falas, o sugerir em detrimento do mostrar. A diferença é que aqui nenhum destes aspectos funciona, e quando assim é só servem para irritar e piorar a situação.

O problema principal é que o filme não arranca, as personagens roçam a banalidade e o patamar de beleza e magia que Kar Wai ambicionava atingir ficou-se por palavras soltas e sem sentido, desprovidas de contexto. Dos actores é que ninguém se pode queixar, com interpretações fantásticas, na medida do possível, de Norah Jones, Jude Law, Natalie Portman e Rachel Weisz. E a mudança da acção das ruas de Hong Kong para Nova Iorque e para o interior da América, com os seus bares, restaurantes e casinos, também resulta muito bem, o que só faz imaginar ainda mais a fantástica obra que Kar Wai, se inspirado, podia ter feito.

"My Blueberry Nights" é descrito como um "road movie", mas na verdade só o é a partir de metade do filme. Até esse ponto, acompanhamos a aproximação amorosa entre Jeremy (Jude Law), um inglês proprietário de um café em Nova Iorque, e Elizabeth (Norah Jones na sua estreia como actriz), uma rapariga ingénua com o coração destroçado após romper a relação com o namorado de longa data. Elizabeth, a necessitar de desabafar, deambula pelo café de Jeremy durante a noite, e os dois estabelecem uma intimidade muito especial. No meio de tudo isto, Elizabeth torna-se adoradora da tarte de mirtilo (Blueberry pie) de Jeremy, uma metáfora pouco conseguida para a solidão. A história esgota-se rápido e o tempo demora muito, muito a passar.

Até que Elizabeth decide fazer-se à estrada e mudar a sua vida, enfrentado-a de frente. Mete-se numa camioneta e parte para Memphis, onde trabalha num café de dia e num bar durante a noite. É aí que conhece Arnie (David Strathairn), um polícia alcoólico e solitário, incapaz de aceitar o fim do casamento com a sua ainda mulher, Sue Lynne (Rachel Weisz). Arnie frequenta os dois estabelecimentos onde Elizabeth trabalha, e desabafa com ela por diversas vezes. O que era suposto ser um trágico conto amorosa, capaz de tocar ao coração de uma pedra, acabou por se revelar uma história manca e frouxa, com vários aspectos mal explorados e situações pouco inverossímeis.

Adiante. Elizabeth abandona Memphis e segue viagem para Nevada, onde arranja trabalho a servir bebidas num casino. Leslie (Natalie Portman num estilo muito "cool") é uma jogadora de póquer que aprendeu tudo o que sabe com o pai. É atrevida, aventureira e gaba-se de saber ler as emoções nas pessoais e de não confiar em ninguém, incluindo ela própria. Ou seja, é tudo o que Elizabeth não é. Depois de alguns incidentes, as duas partem juntas para Las Vegas numa viagem de carro, onde cada uma procura perceber que emoções se escondem por detrás das capas exteriores. Ambas têm algo que necessitam de aprender com a outra, e é esse o princípio da sua amizade.

Mas esta história também não escapa ao vulgar, e fica de nova a sensação de que o que sobra em maneirismos falta em substância. Kar Wai não sabe filmar as suas personagens sem lhe dar o toque pessoal. Seja um desfoque, uma luz, um vidro. E se esse aspecto vai funcionando enquanto o filme se passa em Nova Iorque, perde completamente o interesse quando se desloca para as grandes planícies americanas. Junta-se-lhe a falta de consistência do argumento e temos uma segunda parte de filme bem aborrecida.

O melhor do filme ficou guardado para o cameo de Chan Marshall, mais conhecida entre nós como Cat Power. É um daqueles momentos que nos faz recordar a beleza que, se bem feito, pode ser o cinema. Embora sejam só 2 ou 3 minutos, compensa o investimento inteiro. Assim fossem os outros 87 minutos...

Classificação: 3/10

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O Segredo de um Cuscuz




Título original: La Graine et le Mulet
Realização: Abdel Kechiche
Ano: 2007

Abdel Keniche é um realizador de origem Tunisina, mas radicado em França desde muito novo. Não é por isso de estranhar que os seus filmes tenham como tema a experiência dos emigrantes árabes na França e a complexidade da sua adaptação ao território. Neste "O Segredo de um Cuscuz", o protagonista é Slimane Beiji (Habib Boufares), um homem na casa dos 60 anos que, depois de toda uma vida a trabalhar no cais a reparar barcos, é considerado dispensável pelos patrões. Os argumentos que lhe apresentam são simples: está velho, é lento e deixou de ser rentável. Encurralado por esta situação e a necessitar desesperadamente de um ganha pão, Slimane decide tentar concretizar um sonho, o de abrir um restaurante.

Mas a luta de Slimane por ultrapassar os obstáculos necessários para conseguir levar para a frente a ideia do restaurante está longe de ser o tema principal. Pelo contrário, funciona apenas como motor para apresentar as realidades sociais e pessoais da comunidade magrebina no geral, e desta família em particular. O ritmo do filme é lento, dolorosamente lento, as cenas correm por demasiado tempo, os diálogos e situações são do mais trivial que se imagine e os close-ups constantes. Tudo isto junto contribui para um realismo de certo modo apelador, mas também a um certo desequilíbrio dramático e a espaços alieanador.

Slimane é uma pessoa triste e conformada que vive num quarto do hotel cuja dona é a sua namorada, Latifa (Hatika Karaoui). Latifa tem uma filha, Rym (Hafsia Herzi), que considera Slimane seu pai e que lhe dá preciosas ajudas durante todo o filme. Souad (Bouraouia Marzouk) é a ex-mulher de Slimane e os filhos ainda acreditam numa reconciliação entre os dois. Quase nenhum dos filhos aceita a relação entre o pai, Slimane, e Latifa. Mas chega de falar das personagens e das relações entre elas, que, alias, são tantas que não saiamos daqui.

O mais importante não é a história nem as voltas (poucas) que ela dá, mas sim mostrar a luta diária destas pessoas, pegar num pedacinho das suas rotinas e expô-las no ecrã. É um filme duro e a exigir estômago, com uma banda sonora praticamente inexistente e uma banalidade que nos leva quase ao desespero. O milagre aqui é que, perante este estilo narrativo, primeiro estranha-se e depois entranha-se. Ou seja, no início só nos apetece sair porta fora e maldizer o dinheiro dado pelo bilhete, mas conforme o tempo vai passando vamo-nos habituando às personagens, aos seus tiques e às suas particularidades, identificamo-nos com elas e já não as queremos deixar. Mais importante, revemo-nos nas suas discussões insignificantes e no intimismo delas reconhecemos algumas das nossas próprias quezílias familiares.

É um filme naturalista cheio de potência dramática, que exige um pouco de paciência mas que acaba por compensar. Infelizmente, como já referi, a sua maior força é também a maior fraqueza. Estende-se por demasiado tempo (cerca de 2h e 30m) e não é um género que chame muitos adeptos. É um daqueles filmes que vemos uma vez na vida, mas nunca pensamos em revê-lo. Mas não deixa por isso de ser um retrato pungente da vida de uma população que não vive adaptado ao pais que os adoptou, que não consegue deixar a classe baixa, dos empregos instáveis e não-qualificados.

Por tudo o que referi, "O Segredo de um Cuscuz" é um filme muito conseguido, com grandes interpretações e uma grandeza que só não é maior por ter um final completamente desastroso. Não fosse esse facto, e estávamos perante uma obra quase perfeita, dentro do seu estilo. Assim sendo, não se consegue evitar uma pequena sensação de vazio ao abandonar a sala.

Classificação: 6/10

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Contas à Vida - 60's Dr. Estranho Amor




Título Original: Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb
Realização: Stanley Kubrick
Ano: 1964

Década de 60, a guerra fria atinge o seu auge, o conflito nuclear é uma ameaça séria à sobrevivência e as pessoas vivem em permanente medo e ansiedade. Duas potências confrontam-se num conflito sem fim à vista. O que fazer perante esta situação dramática? Stanley Kubrick tinha a resposta: uma comédia, e provavelmente a mais deliciosa comédia alguma vez feita. É assim que se vêem os génios: pega-se numa situação de iminente catástrofe e põe-se toda a gente a rir. Não é preciso efeitos especiais (poucos havia na época), nem histórias demasiado complexas e nem sequer muitos actores (Peter Sellers desempenha o papel de três personagens). Parece fácil, mas vai-se a ver é até bastante complicado, e provavelmente só Stanley Kubrick para nos trazer esta obra-prima. Quando se sabe...


Mas Stanley Kubrick não faz milagres sozinho. Ter Peter Sellers como protagonista ajuda e não é pouco, e o resto do elenco também não lhe fica a dever nada. O que mais impressiona é que nada é deixado ao acaso, tudo bate certo. Todos os movimentos, falas, expressões roçam a perfeição. A forma como é construída a tensão, o ritmo e a insanidade crescente é isenta de falhas. Apesar de toda uma carreira de fazer inveja, a realizar filmes brilhantes, a reinventar géneros e a influenciar movimentos, Stanley Kubrick conseguiu aqui o seu trabalho mais completo.

Dr. Strangelove não é uma comédia vazia de significado, muito pelo contrário. Embora não deixe nunca de ser hilariante, é um retrato bem sério dos tempos que se viviam e dos riscos de incontáveis perdas humanas, caso a insensatez continuasse a reinar. Uma visão aterradora que Kubrick nos oferece, mais importante que mil teses juntas sobre os efeitos da guerra fria. O sarcasmo e a ironia são uma constante, e o absurdo atinge níveis impensáveis - a conversa telefónica entre o presidente americano e o líder da União Soviética é o melhor exemplo disso.

Jack Ripper (Sterling Hayden) é um general da força aérea que perdeu completamente a noção da realidade. Está convencido que os comunistas estão a planear danificar os "preciosos fluidos corporais" dos americanos e ordena um ataque nuclear aéreo aos soviéticos, sem autorização dos superiores. O presidente (Peter Sellers), por seu lado, organiza uma reunião de emergência no pentágono para solucionar a crise e trazer de volta o avião enviado para lançar a bomba. Mas para que o avião regresse é necessário que Ripper revele o código para o efeito, e este recusa-se a fazê-lo. Para aumentar o problema, o embaixador russo na América revela que se a União Soviética for atingida por uma bomba nuclear, fará activar automaticamente um mecanismo denominado "Doomsday Machine", que tem como objectivo matar toda a vida na Terra.

A solução não está fácil de se encontrar e o tempo começa a escassear. Já em desespero, o presidente manda chamar o Dr. Stangelove (Peter Sellers), um cientista excêntrico ex-nazi que apresenta as propostas mais bizarras que se possa imaginar, e também os momentos mais hilariantes que se possa imaginar. Para mais, tem uma mão biónica que parece ter vontade própria e que volta e meia o tenta estrangular ou faz a saudação nazi. E como se ainda não fosse suficiente, o embaixador russo está mais preocupado em fotografar os segredos contidos na sala do pentágono do que em salvar o mundo da destruição.

A cena final, onde o Major 'King Kong' (Slim Pickens) se monta em cima da bomba em histeria, como se de um cavalo se tratasse, é de antologia. 34 Anos depois, o mundo deu muitas voltas, mas é como se os anos não tivessem passado para este filme. Tão assustador e cómico como no dia de lançamento, é uma verdadeira lição. Garanto-vos, o cinema não fica melhor que isto.

Classificação: 10/10

terça-feira, 26 de agosto de 2008

O Homem do Tempo




Título Original: The Weather Man
Realização: Gore Verbinski
Ano: 2005

Gore Verbinski é um nome familiar para a maior parte das pessoas, muito devido à saga "Piratas das Caraíbas", de sua responsabilidade. Mas se esperam de The Weather Man as mesmas doses de acção e aventura, preparem-se para uma desilusão das grandes. Verbinski virou completamente a agulha e apresenta-nos a angustiante vida de um apresentador do boletim meteorológico com a vida pessoal feita num caco. Entre dois "piratas", surge esta obra pessimista e bem trabalhada sobre as dificuldades que a vida adulta coloca e como conseguir (ou não) ultrapassá-las.

David Spritz (Nicolas Cage) é, então, o meteorologista de serviço. David trabalha em Chicago, numa estação de televisão local, mas o sucesso que consegue faz com que sonhe em ir para Nova Iorque e dar o salto para um programa emitido a nível nacional. Na vida pessoal, contudo, as nuvens negras não saem do caminho. Divorciado, tenta inutilmente a reconciliação com a sua ex-mulher (Hope Davis). A filha, Shelly (Gemmenne de la Peña), tem problemas de peso e de falta de personalidade, optando constantemente por desistir quando as coisas se tornam complicadas. O filho, Mike (Nicholas Hoult), tem problemas com drogas e é assediado sexualmente por um dos conselheiros na reabilitação, para desconhecimento dos pais, mais preocupados em discutir e atirar responsabilidade para cima um do outro. Finalmente a relação de David com o pai, Robert (Michael Caine), também não é a mais saudável. Robert é um vencedor do prémio Pulitzer e David sente-se inferiorizado na sua presença, já que Robert não parece levar a profissão do filho como séria.

Todos estas questões, na visão de David, resolvem-se se conseguir o emprego em Nova Iorque. Aí pode começar do zero e emendar os erros do passado. Mas nada é assim tão fácil, e David até parece já o saber, não querendo somente acordar da ilusão. Aliás, um dos principais problemas de David é ser inseguro e não acreditar em si próprio. Apesar de ser bem remunerado, bom no que faz e de ter um trabalho pouco exigente e com largas vantagens, isso não é lhe é suficiente. Constantemente bombardeado na rua por fast-food que as pessoas que não o suportam atiram dos carros, perde-se em pensamentos sobre o porquê do ódio das pessoas, o porquê da família não ser feliz, o seu papel na sociedade, o valor do seu trabalho. O facto de nem sequer ser meteorologista, e de receber as previsões meteorológicas de outras pessoas, também o faz sentir inútil e mais culpado ainda pelo ordenado chorudo que recebe.

O filme cria um ambiente nocturno e trágico que não tende a desaparecer conforme os minutos vão passando. E esse é o seu principal trunfo. Um ou outro raio de sol espreita entre as previsões de céu fechado e nuvens negras, mas nada mais. O humor também aparece em doses generosas, mas é um humor cínico e seco, que arranca uns bons sorrisos irónicos. A certa altura pode parecer que o filme não vai chegar a lado nenhum, mas isso pouco importa. O importante mesmo é ver voltas que a vida dá (como diz Robert: "Easy doesn't enter into grown-up life."), o importante mesmo é que é sincero e nos faz reflectir.

Nicolas Cage está fantástico no papel de um homem sem rumo e em certa medida conformado com o destino. Já não o víamos assim desde "Inadaptado". Por cada passo no caminho certo que tente dar, saí ao contrário. Tenta ser um pai atencioso, mas os filhos continuam infelizes. Não consegue fazer com que o pai deixe de o olhar com decepção, e até no funeral em vida do pai, com uma doença terminal e a quem restam poucos meses, o discurso que preparou foi interrompido numa frase embaraçosa por uma falha na corrente eléctrica. É , sem dúvida, uma das personagens mais deprimentes alguma vez mostrada em película de 35mm.

E embora as situações possam por vezes cair para o lado do absurdo, é tudo feito de forma dolorosamente embaraçosa e realista, que às vezes faz lembrar as nossas próprias experiências infelizes. E são esses os momentos tocantes, que fazem de The Weather Man um filme arrojado e adulto. Que filmes assumidamente deprimentes não façam parte da lista de visionamentos obrigatórios até se percebe, mas se derem uma oportunidade, vão ver que arriscam-se a mudar de opinião.

Classificação: 7/10

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Tropa de Elite




Título Original: Tropa de Elite
Realização: José Padilha
Ano: 2007


Urso de Ouro no Festival de Berlim e sucesso garantido mesmo antes de estrear, Tropa de Elite chega-nos do Brasil com o rótulo de filme-sensação, na senda do fantástico "Cidade de Deus". E para aumentar a curiosidade, nem falta a polémica: alguns espectadores aplaudem fervorosamente, outros, chocados, consideram uma incitação à violência mais primária e saem a meio. Não se pode agradar a gregos e a troianos, e José Padilha nem parece ter-se preocupado muito com isso. Pelos lados de cá o tema ainda é visto como algo que não nos afecta, do qual guardamos certo distanciamento. Por essa razão, conseguimos com mais facilidade analisar o filme pelo filme, friamente e deixando de lado as nossas emoções e opiniões pessoais. Mas vamos pelo princípio.

Tropa de Elite passa-se nas favelas do Rio de Janeiro, as mesmas favelas (ou então muito parecidas) de "Cidade de Deus". Mas tem uma grande diferença: o foco da atenção não é dado às pessoas e traficantes que lá vivem, mas à polícia que tem a quase impossível missão de pôr ordem no assunto. E não se trata de uma polícia qualquer, mas de uma "tropa de elite" que os próprios polícias normais temem: os BOPE. E os BOPE não são para brincadeiras, quando entram nas favelas é para usar de todos os meios, independentemente de quais sejam, para atingir os seus fins. Traficante é traficante, guerra é guerra, e não há lugar para contemplações ou dúvidas. Para os BOPE só existem dois tipos de pessoas, os que estão com eles e os que não estão. No meio não está a virtude. Como afirma o Capitão Nascimento (Wagner Moura), que faz de narrador, se o BOPE não existisse, a cidade toda estava entregue aos traficantes.

José Padilha tem um passado ligado à área documental, e essa vertente não passa nada despercebida. O filme é um retrato duro, cru e realista sobre a vida, o trabalho e os problemas pessoais destes homens proibidos de ceder à fraqueza. A brutalidade usada pelos BOPE, que para apanhar os traficantes puxa dos mesmos métodos que este, não é aligeirada nem disfarçada. Ao mesmo tempo, leva-nos numa viagem ao centro das teias da burocracia e da corrupção existentes na polícia regular, teias essas que impedem quem quer trabalhar honestamente de o fazer. Sem meias-palavras nem floreados, Padilha mostra-nos o pior do sistema através do seu interior.

O que o filme tem de menos interessante acabam por ser as próprias personagens. O Capitão Nascimento, casado e esperando um filho, acha que é o momento certo para a retirada. Está cansado, e a mente começa a ceder. No entanto, não quer abandonar sem ter a certeza de encontrar alguém com qualidades para o substituir. E as qualidades são ser frio, profissional e impiedoso. Neto (Caio Junqueira) e Matias (André Ramiro) são os candidatos para lhe suceder. Neto tem a mentalidade de uma máquina de matar, mas falta-lhe a inteligência. Matias tem a inteligência, mas falta-lhe a mentalidade. No geral são personagens sem densidade, que apenas estão lá para servir um papel e pouco mais, o que interessa á a acção.

Outro dos problemas é que o filme não tem uma mentalidade tão aberta quanto isso. Mostra a tomada de posições e o uso da violência dos BOPE como inevitável, e quem ataca esta posição é visto como um idealista mimado que nem sequer sabe o que é a vida nas ruas. Não me parece que seja uma decisão propositada do realizador ou que seja um espelho da sua opinião pessoal, mas uma vez contada a narrativa do lado da policia, o extremar de posições é difícil de evitar. Alias, essa é uma das principais características dos BOPE. Num país onde nada funciona, são obrigados a tornar-se autómatos para sobreviver, num processo onde o discernimento tem de ficar pelo caminho. Guerra é guerra.

Não se trata de uma continuação de "Cidade de Deus", mas tem algumas semelhanças. O tipo de edição, o ritmo, o ambiente de favela e mesmo alguns dos profissionais, entre eles o co-argumentista, são os mesmos. Mas Tropa de Elite é muito mais obscuro e fatalista. A música é pesada, a simbologia parece tirada do Rambo. Não há personagens simpáticos ou com um fundo bom. Entre polícia e bandido, a diferença não é assim tanta. Em certos pontos, o filme é portentoso e põe-nos o coração a bater mais forte, puxa-nos para a espiral de violência. Nós próprios, como espectadores, damos por nós a perder o discernimento. Não considero que glorifique a violência nem ela se torna no mais importante, é apenas a única solução. Quem for para a sala de cinema de mente aberta e deixar as ideias feitas do lado de fora, arrisca-se a uma agradável surpresa. Não está ao nível de "Cidade de Deus", mas é sem dúvida um dos melhores filmes do ano. A não perder.

Classificação: 7/10