terça-feira, 15 de julho de 2008

Contas à vida - 80´s Não Dês Bronca






Título Original: Do The Right Thing
Realização: Spike Lee
Ano: 1989

Para começar, só para que não sobrem quaisquer dúvidas, começo desde já por dizer que Do The Right Thing é uma obra-prima. E é uma obra-prima hoje, amanhã, ontem e há dezanove anos atrás, quando foi pela primeira vez exibido no festival de Cannes. Se houver um passo acima da obra-prima, este filme está definitivamente na linha da frente. É uma das poucas experiências cinematográficas que me deixou completamente arrasado, de boca aberta, sem saber muito bem o que tinha acontecido e o que tinha acabado de ver. Para alguém que acompanha muito cinema, sempre com grande sentido crítico, habituado a todo o tipo de esquemas e artimanhas para conquistar o espectador, não é algo fácil de se sentir. Quando acontece, podemos dizer que valeu a pena a espera. Apenas à terceira tentativa, Spike Lee tira da cartola um filme arrebatador e perturbante, atingindo um nível que nunca mais conseguiu - nem vai conseguir, arrisco eu - alcançar na sua carreira, embora obras como "Verão Escaldante" ou a "Última Hora" sejam também excelentes exemplos do seu talento.

Como o que é bom se topa ao longe, o inicio é logo genial, com um genérico ao som de "Fight the Power", dos Public Enemy. Logo aí, percebemos que algo de completamente diferente se vai passar. A acção tem lugar num bairro pobre de Brooklyn, durante o dia mais quente do verão. Mookie (Spike Lee) é um distribuidor de pizzas na "Sal´s famous pizzeria", cujo dono é precisamente Sal (Danny Aiello) , um italo-americano que se orgulha dos moradores terem crescido com as suas pizzas. Sal e os seus dois filhos são, juntamente com uma família coreana que explora um supermercado, os únicos que não são negros no bairro, mas como ali vivem à muitos anos, estão completamente integrados na comunidade: conhecem toda a gente, e toda a gente aprecia as suas pizzas.

Um dos filhos de Sal, Pino (John Turturro) é racista assumido e só pensa em sair de perto dos negros, enquanto o outro, Vito (Richard Edson), é mais acessível e tolerante. Quanto a Sal, é um homem prático que sente o bairro como seu e tem grande orgulho no seu negócio. Mookie é preguiçoso e leva pouco a sério o seu trabalho, mas é uma pessoa honesta e em quem Sal confia. Entretanto, conhecemos mais personagens do bairro, entre eles Da Mayor (Ossie Davis), um idoso que é uma espécie de instituição; Radio Raheem (Bill Nunn), sempre com estilo e sempre acompanhado por uma aparelhagem com o volume no máximo e Buggin Out (Giancarlo Esposito), um irritante e desmiolado defensor dos direitos dos negros.

Spike Lee apresenta-nos um pedaço da vida de mais um dia aparentemente normal na rotina destas pessoas, em que nada de particularmente especial parece acontecer. Cada um está entretido com as suas actividades, o animador da rádio local mete músicas e dá as dicas para escapar ao calor, as pizzas vão saindo a bom ritmo, a polícia faz a ronda normal. Contudo, conforme as horas vão passando e o calor aumentando, começa-se a sentir as tensões crescer, ódios antigos a surgir à superfície, um nervosismo no ar, e vêem-nos à ideia a imagem de um barril de pólvora, pronto a rebentar a qualquer altura. Do nada, de uma convivência à primeira vista saudável, surgem conflitos intensos que o passar dos anos só veio aumentar. E é nisto que o filme é brilhante, a maneira como sentimos nas nossas entranhas que do silêncio tudo vai explodir numa espiral de violência é assustador, e ao mesmo tempo excitante, causa desconforto, põe-nos no meio do bairro e faz-nos reflectir sobre onde está a razão.

E é numa discussão entre Sal e Buggin Out, sobre o facto de na parede da pizzaria não haver uma única fotografia de pessoas famosas negras, que os problemas se iniciam. Buggin Out, visto como pouco credível pela comunidade, organiza um boicote à pizzaria e rapidamente conta com o apoio de Radio Raheem, esse sim respeitado e ouvido. A iniciativa pega, os ânimos exaltam-se e no fim é o próprio Radio Raheem, personagem que durante todo o filme se mostrou dividido entre o amor e o ódio, que incita o conflito.

Para quem espera encontrar culpados ou inocentes, eles não existem. Ou se existem, todos eles o são. Spike Lee não escolhe lados, limita-se a observar com honestidade e alguma tristeza o estado de uma América que ainda hoje existe, estagnada no tempo e na condição social. O filme está longe de ser incendiário, ou carregado de ódio, e terá sido mal interpretado por aqueles que, em 1989, temiam que pudesse dar origem a confrontos raciais. É um retrato cruel sobre como, muitos anos depois da morte de Luther King e das manifestações dos anos 60, tudo continua mais ou menos na mesma, com a diferença da esperança ter desaparecido. Uma das cenas finais, entre Sal e Mookie, mostra bem o fosse existente entre classes, e embora compreendam os pontos de vista um do outro, não encontram maneira de os unir.

Não existem respostas correctas para problemas tão complexos, e no fim ficamos com um dilema ainda maior: entre o amor (propagado por Martin Luther King) e o ódio (propagado por Malcolm X), qual a melhor solução? Do The Right Thing é um daqueles raros casos em que se eleva o cinema a outro patamar. É mais que um filme, é um retrato de uma época que ainda não morreu, um grito de revolta, um apelo para que algo mude. Vê-lo faz-nos sentir parte de algo maior. Está cheio de pequenos pormenores e significados, é estilisticamente fabuloso, com cores, música e movimento, ao mesmo tempo que consegue regressar sempre ao realismo do conto social.

Se visto hoje é tudo isto e ainda mais, basta imaginar que foi feito em 1989 para nos apercebermos do significado e da dimensão que atingiu. Acabo com a frase de abertura do filme, dita por Mr. Señor Love Daddy (Samuel L. Jackson), o animador da rádio local, numa mensagem mais destinada para o público que para as personagens: WAKE UP!!!!!!


Calssificação: 10/10



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