segunda-feira, 6 de abril de 2009

A Valsa com Bashir



Título Original: Vals Im Bashir
Realização: Ari Folman
Ano: 2008

É improvável, mas vem de Israel um dos mais surpreendentes e perturbadores filmes dos últimos anos. "A Valsa com Bashir" é um documentário de animação que procura reconstruir as memórias que Ari Folman - ao mesmo tempo realizador e personagem principal - guarda do seu envolvimento na invasão de Israel ao Líbano, em 1982. O resultado é uma mistura extasiante entre o sonho e a realidade, em que nunca conseguimos encontrar uma distinção clara entre o que realmente aconteceu e o que as recordações dos intervenientes fabricaram, vinte anos passados sobre o conflito. Mas apesar de todo o aspecto onírico e surrealista que atravessa o filme, são as passagens introspectivas, em que as personagens olham para trás e se apercebem da verdadeira dimensão das suas experiências na frente de combate, que dão a esta obra o rótulo de imperdível.

O filme abre com uma assustadora sequência na qual um grupo de cães, violentos e raivosos, atravessa as ruas da cidade de Telavive, derrubando tudo o que lhes aparece no caminho. O que vemos é a representação de um pesadelo que tem vindo a atormentar um amigo de Ari Folman nos últimos dois anos e meio, e que tem origem no tempo de serviço que prestou no exército israelita - onde foi obrigado a matar exactamente vinte e seis cães. Atormentado, procura que Folman lhe dê algum tipo de conselho sobre como ultrapassar o trauma. É nesse momento que Folman se apercebe que, com excepção de uma imagem fugaz, é incapaz de relembrar-se do período em que esteve no Líbano. A mente bloqueou essas memórias.

Esse facto deixa-o inquieto e com a sensação de que necessita de perceber a verdade sobre o que realmente aconteceu, especialmente no que se refere ao massacre de Beirute. É a partir daí que procura os antigos amigos que com ele estiveram no Líbano, para lhe poderem ajudar a devolver as recordações. Desse modo vai completando o puzzle na sua mente, ao mesmo tempo que permite aos espectadores visualizar a narração que estes lhe dão dos acontecimentos - alguns caricatos, a maior parte dramática e trágica. O uso da animação permite a liberdade de nos misturarmos no universo estilizado das personagens, de outra forma missão quase impossível, imprimindo uma energia visual invulgar. É a prova de que a animação não se esgota na fórmula dos filmes da Disney, e que pode e deve ser usado com a mestria com que outros usam câmaras e actores.

Acima de tudo, "A Valsa com Bashir" preocupa-se em mostrar como é que os soldados, na altura com meros 20 anos e agora homens de meia-idade, sentiram os acontecimentos, e também como é que o tempo que entretanto passou moldou a sua visão sobre eles. Todos eles têm contas a ajustar com o passado, feridas ainda bem abertas, imagens e pecados que provavelmente os vão acompanhar até ao fim da vida. Os motivos da entrada de Israel no Líbano, divisões ideológicas ou as opiniões sobre de que lado se encontrava a razão não são aqui abordados, nem interessam.
Os sentimentos mais comuns no filme são o de nostalgia e tristeza, bem evidentes, aliás, na forma como são evocados os acontecimentos passados. O próprio horror de toda a situação chega-nos de uma forma desencantada, a um ritmo lento, mas com grande impacto psicológico. À medida que o filme se vai aproximando do fim, a tensão sobe e atinge-nos de forma cada vez mais certeira, até chegarmos a uma sequência final simplesmente arrepiante, onde a animação dá lugar a imagens reais das consequências do massacre de Beirute. Essa mudança súbita faz-nos aperceber da verdadeira dimensão humana do massacre, atira-nos o insustentável peso da realidade para os ombros. E deixa-nos sem reacção, a precisar de alguns segundos a olhar para a tela vazia, já depois de o filme ter terminado, para nos recompormos.

"A Valsa com Bashir" quase não tem defeitos. Embora tenha passado mais ou menos despercebido pelo nosso país e tenha visto fugir o Óscar de melhor filme estrangeiro, trata-se de uma obra marcante e incontornável, um registo que ficará gravado na retina de quem o viu. A inovadora utilização da animação, aliada à narrativa clássica dos documentários, revelou-se uma aposta mais que ganha. Tal como Ari Folman constatou por si próprio, a visão que tem sobre a existência não mais voltou a ser a mesma depois de pisar território onde reina a devastação e a morte. Também para nós, espectadores, é uma viagem inesquecível aos infernos. Não percam a oportunidade de ver esta pérola.

Classificação: 10/10