quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Quem Quer Ser Bilionário?



Título Original: Slumdog Millionaire
Realização: Danny Boyle
Ano: 2008

Slumdog Millionaire pode nem ser o melhor filme do ano, mas é seguramente o grande fenómeno cinematográfico do ano. Grande vencedor da edição dos Óscares, esteve a uma unha negra de não arranjar distribuidora e ir parar directamente à distribuição em DVD. Com um orçamento dez vezes inferior ao de Benjamin Button, um elenco constituído por perfeitos desconhecidos e estreantes, filmado na longínqua Índia e sem a poderosa máquina publicitária de Hollywood como suporte, estavam reunidas todas as condições para passar completamente ao lado do grande público. Contrariando as expectativas, acabou por gerar-se um enorme hype em seu torno que desencadeou um sucesso estrondoso. Tal como no filme, é bom saber que na vida real também acontecem histórias inesperadas e com final feliz. Só por isso já seria de saudar a audácia de Danny Boyle.

Mas Slumdog Millionaire não se esgota no hype, e não é difícil perceber porque se tornou extremamente popular entre o público. Danny Boyle, numa das suas obras mais acessíveis e convencionais até à data, conta-nos a história de Jamal (Dev Patel), um jovem orfão de Bombaim cujo emprego é servir chás num call-center. Jamal está apenas à distância de uma resposta certa de levar para casa o prémio do concurso "Quem Quer Ser Milionário?". A questão que se levanta agora é a seguinte: como pode um simples e pobre zé-ninguém sem estudos, que cresceu nas ruas, conseguir responder certo a tantas perguntas? A polícia está convencida que Jamal fez batota e leva-o para a esquadra, onde se desenrola um interrogatório com contornos violentos. É ai que, para justificar como sabia as respostas, Jamal conta as peripécias da sua vida desde infância, passando o filme a partir desse momento a intercalar os flashbacks com o interrogatório e a participação no concurso.

Ao acompanharmos a infância e adolescência de Jamal, acompanhamos também a evolução da realidade social da Índia, onde apesar do desenvolvimento recente e do crescimento da classe-média, continuam a existir cidades sobrelotadas em que o Ganges serve de esgoto, miséria sem fim e bairros controlados por gangues violentos. Jamal, miúdo honesto, atrevido e bem-intencionado, é o típico "underdog", que cresce rodeado por circunstâncias que o impedem de ser alguém na vida e, principalmente, de estar junto à sua grande paixão, Latika (Freida Pinto). Mesmo constantemente enganado e subjugado pelos mais poderosos, não desiste nunca de a procurar. Lá no fundo, Slumdog Millionaire é apenas uma simples e lamechas história de amor sem nada de extraordinário, mas bem envolta num cenário e conjunto de peripécias excitantes e dramáticas que acabam por fazer esquecer esse facto.

Em muitos aspectos é impossível não nos vir à memória Cidade de Deus. A história tem pontos em comum, a realização é da mesma colheita: ritmo e edição frenéticos numa mistura de romance com suspense e thriller, tudo alicerçado numa fantástica energia visual. Dá ideia que Danny Boyle estudou bem a lição de Fernado Meirelles, embora Cidade de Deus seja cinema de outro campeonato, ao alcance de muito poucos. As sonoridades de Bollywood assentam como uma luva e a escolha do par de protagonistas, Dev Patel e Freida Pinto, apesar de ser um risco revelou-se uma aposta ganha.

Mas acima de tudo Slumdog Millionaire tem em alma e coração o que lhe falta em consistência narrativa. Capaz de nos enrolar nas emoções das personagens e nos fazer torcer por um final feliz, deixa o mais insensível dos espíritos bem-disposto após o final. Mágico, simples e entretido, embora aborde temas sérios e deprimentes, acaba por se inserir na categoria dos feel-good movies. Talvez tantos Óscares tenham sido um exagero e talvez o filme esteja a ser sobrevalorizado, mas não deixa de ser surpreendente esta visita a Bombaim pela mão de Danny Boyle.


Classificação: 7/10

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Fome




Título original: Hunger
Realização: Steve McQueen
Ano: 2008


Cruel, violento, perturbador. Assim se descreve em poucas palavras a estreia de Steve McQueen, conceituado artista plástico britânico, na realização. "Hunger" conta a história das últimas semanas de vida de Bobby Sands (Michael Fassbender), membro do IRA que, em 1981, liderou uma greve de fome em protesto contra as políticas de Margaret Tatcher relativamente aos movimentos independentistas da Irlanda do Norte. Mistura de ficção com documentário, é um relato poderoso e incómodo sobre a vida na prisão de Maze, onde o ódio de décadas e o medo são os sentimentos reinantes entre guardas e prisioneiros. Ao contrário da abordagem de outros filmes sobre o mesmo tema, Steve McQueen não se preocupa em entrar em derivações políticas ou em análises profundas sobre a validade dos argumentos de ambos os lados da luta. Limita-se a mostrar, sem artifícios ou embelezamentos, a brutalidade de um conflito onde a razão há muito foi deixada de parte.


"Hunger" não segue uma estrutura narrativa clássica, é um filme artístico e experimental que se divide claramente em três actos ligados por uma mesma realidade. De estrutura rígida e minimalista, Steve McQueen reduz o diálogo ao essencial e é o fulgurante ambiente visual que, por si só, funciona como motor da história. É através deste método que começa por nos mostra as rotinas de um guarda-prisional (Stuart Graham), que incluem submergir os nós dos dedos em água para sarar as feridas de espancar prisioneiros, ou procurar bombas debaixo do carro para se assegurar que tal comportamento não o torna a próxima vítima do IRA. Entretanto, acompanhamos também dois prisioneiros que, como forma de luta pelo não reconhecimento do estatuto de prisioneiros políticos, recusam-se a manter a higiene pessoal e utilizam os próprios fluidos corporais para pintar as paredes da cela.

É só após esta visita ao dia-a-dia na prisão de Maze que encontramos a personagem principal, Bobby Sands, no momento em que é arrastado para uma banheira onde um guarda o esfrega com uma vassoura, acabando a sua resistência por provocar uma rixa com uma violenta intervenção policial. Aqui começa a segunda parte do filme, que se estende num fabuloso plano-sequência de aproximadamente 10 minutos, onde Sands dá a conhecer as suas intenções de levar a cabo a greve de fome ao padre Moran (Cunningham). Esta é a cena central e fulcral de "Hunger", cheia de energia e vivacidade, embora a câmara se mantenha intocável. Numa obra quase sem diálogos, é nesta conversa sobre a validade ética do acto desesperado de Sands que percebemos um pouco sobre as motivações dos intervenientes e as bases ideológicas do conflito.

A última parte centra-se na impressionante decadência física e psicológica de Bobby Sands. Com imagens chocantes, para ser simpático, assistimos ao lento tormento de um homem consciente de que, para se manter fiel à causa, só a morte lhe resta. O filme, despojado de qualquer tentativa de romancear os acontecimentos, não tenta tornar Sands um mártir ou um herói. No entanto, concorde-se ou não com o protesto, é impossível deixar de sentir respeito pela forma como, no meio de tamanha insanidade, Sands e muitos outros homens nunca deixaram de lutar e foram capazes de se sacrificar pelo que acreditavam ser justo. Nesta fase, os espectadores já estão completamente embrulhados na história, e apercebemo-nos do quão importante e pessoal a disputa se tornou para ambos os lados do conflito, indisponíveis para ceder um milímetro que seja.

"Hunger" é um filme obrigatório e um dos melhores de 2008. Requer estômago e em algumas partes paciência, mas no fim é certo que vem a recompensa. Original e destemido, depois de uma primeira obra deste calibre só se pode augurar um futuro promissor a Steve McQueen. Com uma realização de inegável qualidade, engendra imagens brilhantes e ao mesmo tempo assustadoras, que conseguem a espaços representar a violência e a dor de forma quase poética. McQueen faz com que cinema bom e original pareça uma coisa simples. Basta não ter medo de arriscar, saber à partida o que se quer mostrar e a forma como o fazer. Por cá, ficamos felizes se continuar assim.

Classificação: 8/10