terça-feira, 23 de setembro de 2008

Juno




Título Original: Juno
Realização: Jason Reitman
Ano: 2007

Juno, filme saído do circuito independente americano, foi a grande surpresa de 2007. Produzido com um baixo orçamento, atingiu lucros milionários e foi uma das presenças mais notadas na cerimónia dos Óscares, com nomeações para melhor actriz, melhor realizador, melhor argumentista e melhor filme. De certa forma, um percurso que em muito faz lembrar o conseguido por Little Miss Sunshine, em 2006. E até no estilo utilizado os dois filmes são semelhantes, tratando-se de comédias dramáticas ternurentas, que nos fazem aproximar das personagens e acabam por nos deixar o coração mole. São os denominados "feel-good movies". Mas se em Little Miss Sunshine o hype foi um pouco exagerado, em Juno justifica-se totalmente. É, em vários aspectos, um filme superior e um exemplo de como se pode ter sucesso a realizar seguindo prioritariamente o instinto e as paixões.

Quero com isto dizer que embora Juno não seja tecnicamente perfeito, tem um coração tão grande que nos faz esquecer o resto. Ou dizendo melhor, ainda bem que não é perfeito, porque são as pequenas imperfeições que lhe dão a piada que tem. Ver Juno assemelha-se, em certos aspectos, a assistir a uma prova de natação sincronizada nos jogos olímpicos: parece tudo tão simples, mas funciona tão bem. Estranha analogia, eu sei, mas é a que melhor me ocorre para definir o porquê de Juno ser tão bom. Embora não seja uma obra-prima nem contenha elementos de realização capazes de fazer corar Martin Scorcese, também ninguém se preocupou minimamente em que assim fosse. Não é esse, nem de perto nem de longe, o objectivo de Reitman e companhia. A prioridade é dada à simplicidade, ao humanismo e ao amor.

E funciona tão bem, tão bem que é impossível acabar de ver este filme e não sentir, nem que só por uns minutos, que o mundo é um lugar onde predomina a alegria. É também para isto que serve o cinema, para nos proporcionar momentos leves e descomplexados, que funcionem como um pequeno escape da realidade. Ellen Page protagoniza o papel de de Juno MacGuff, uma jovem rebelde e desenrascada de 16 anos que, num golpe de azar, engravida depois de ter relações sexuais com o seu melhor amigo, Paulie (Michael Cera). E para engravidar só foi preciso tentar uma vez, uma tarde de férias onde o tédio reinava. Apanhada de surpresa, Juno procura uma clínica para efectuar o aborto, mas à última da hora a sua consciência não a deixou continuar. Mesmo tendo em conta todas as dificuldades, Juno decide levar a gravidez até ao fim. Durante este processo Paulie, envergonhado e introvertido, não tem voto na matéria.

Juno, embora decida levar a gravidez até ao fim, considera-se muito nova para cuidar de um bebé. Com a ajuda da sua amiga Leah (Olivia Thirby), que lhe sugere a opção de dar o filho, procura no jornal anúncios para pretendentes a pais adoptivos (pelos vistos na América isto é possível). E encontra Vanessa (Jennifer Garner) e Mark (Jason Bateman), um casal que vive numa típica casa "bonitinha" dos subúrbios e que deseja ardentemente ter um filho. Ou melhor, Vanessa deseja, porque Mark, cuja mentalidade parou pelos 80's, vai revelando algumas reservas.

Daí para a frente seguimos o evoluir da gravidez de Juno e as dificuldades e dúvidas inesperadas que, aproximando-se o dia do parto, vão surgindo na sua cabeça. A sua leveza e ingenuidade inicial ao lidar com toda esta situação vai dando subtilmente lugar a emoções sérias sobre as dificuldades que esta implica. E entre sequências genuinamente engraçadas, diálogos inteligentes e one-liners hilariantes e perfeitos para a personagem de Juno, somos obrigados a ceder e a comover-nos com a seriedade do momento que vive o dos que se aproximam, em especial o de dar o bebé aos pais adoptivos.

Dentro do ecrã, Ellen Page faz a festa, atira os foguetes e só não apanha as canas porque todos os outros actores assimilaram muito bem os seus papéis e cumpriram na perfeição. Jason Reitman também cumpre na realização, acertando em cheio no tom necessário para o filme e conseguindo demonstrar uma maturidade e segurança que só podem augurar coisas boas para o futuro. Mas apesar de tudo isto, o destaque tem de ir direitinho para a argumentista, Diablo Cody. Há uns anos trabalhava como stripper, hoje tem um Óscar em casa a enfeitar a estante. No seu primeiro guião, Diablo conseguiu um impressionante equilibrar entre subtileza, humor, ingenuidade e até pretensiosismo. Está tudo lá, o bom, o mau, e o mais ou menos. Com odesenvolvimento de narrativa clássico dos filmes de Hollywood, Diablo Cody mostra que é fácil ser-se genial sem precisar de se inventar nada.

Analisando bem, é um filme honesto sobre como encontrar o nosso caminho e o valor das relações humanas e do amor. Quem o acusou, entre outras coisas, de ser um panfleto anti-aborto simplesmente não viu Juno ou não sabe do que está a falar. A banda sonora é , no geral, óptima, mas atenção especial para o momento em que toca "Sea of Love", cover da autoria de Cat Power, numa altura crucial e em que as emoções estão mais ao flor a pele. Se existe perfeição, garanto, ela está nessa sequência. O veredicto para mim é simples: por mais que procurem, dificilmente encontram por aí melhor.



Classificação: 10/10

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

O Sabor do Amor




Título Original: My Blueberry Nights
Realização: Wong Kar Wai
Ano: 2007

De falta de pontaria Wong Kar Wai não se pode queixar. Logo no seu primeiro filme rodado na América, com um elenco inteiramente americano e inglês e falado em língua inglesa, espalhou-se totalmente ao comprido. Os antecedentes de Kar Wai, esses, não enganam: o homem sabe mesmo o que faz. Com um estilo visual único, é um especialista em observar a vida através de momentos, texturas, neons perdidos ou slow motions cobertos por músicas nostálgicas (quem não se lembra da banda sonora de Nat king Cole, em "In The mood for love"). O controlo da linguagem visual está-lhe no sangue, não deixa um plano por pensar, baralha as imagens e volta a dar, sabe mexer-nos os sentimentos. A principal força de Kar Wai, que o tornou num ícone do cinema, é essa mesmo, a de contar histórias por fragmentos dispersos, libertos, poéticos.

É por isso natural que as expectativas fossem altas, mas infelizmente não se vieram a confirmar. Por muito que custe aos fãs do realizador chinês (nos quais me incluo) admitir, "My Blueberry Nights" é um filme muito fraquinho. Se calhar muito fraquinho até é um elogio. As características dos seus filmes anteriores estão todas lá: uma história melancólica, personagens solitários em sofrimento, amores mal resolvidos, uma atmosfera nostálgica, olhares que substituem as falas, o sugerir em detrimento do mostrar. A diferença é que aqui nenhum destes aspectos funciona, e quando assim é só servem para irritar e piorar a situação.

O problema principal é que o filme não arranca, as personagens roçam a banalidade e o patamar de beleza e magia que Kar Wai ambicionava atingir ficou-se por palavras soltas e sem sentido, desprovidas de contexto. Dos actores é que ninguém se pode queixar, com interpretações fantásticas, na medida do possível, de Norah Jones, Jude Law, Natalie Portman e Rachel Weisz. E a mudança da acção das ruas de Hong Kong para Nova Iorque e para o interior da América, com os seus bares, restaurantes e casinos, também resulta muito bem, o que só faz imaginar ainda mais a fantástica obra que Kar Wai, se inspirado, podia ter feito.

"My Blueberry Nights" é descrito como um "road movie", mas na verdade só o é a partir de metade do filme. Até esse ponto, acompanhamos a aproximação amorosa entre Jeremy (Jude Law), um inglês proprietário de um café em Nova Iorque, e Elizabeth (Norah Jones na sua estreia como actriz), uma rapariga ingénua com o coração destroçado após romper a relação com o namorado de longa data. Elizabeth, a necessitar de desabafar, deambula pelo café de Jeremy durante a noite, e os dois estabelecem uma intimidade muito especial. No meio de tudo isto, Elizabeth torna-se adoradora da tarte de mirtilo (Blueberry pie) de Jeremy, uma metáfora pouco conseguida para a solidão. A história esgota-se rápido e o tempo demora muito, muito a passar.

Até que Elizabeth decide fazer-se à estrada e mudar a sua vida, enfrentado-a de frente. Mete-se numa camioneta e parte para Memphis, onde trabalha num café de dia e num bar durante a noite. É aí que conhece Arnie (David Strathairn), um polícia alcoólico e solitário, incapaz de aceitar o fim do casamento com a sua ainda mulher, Sue Lynne (Rachel Weisz). Arnie frequenta os dois estabelecimentos onde Elizabeth trabalha, e desabafa com ela por diversas vezes. O que era suposto ser um trágico conto amorosa, capaz de tocar ao coração de uma pedra, acabou por se revelar uma história manca e frouxa, com vários aspectos mal explorados e situações pouco inverossímeis.

Adiante. Elizabeth abandona Memphis e segue viagem para Nevada, onde arranja trabalho a servir bebidas num casino. Leslie (Natalie Portman num estilo muito "cool") é uma jogadora de póquer que aprendeu tudo o que sabe com o pai. É atrevida, aventureira e gaba-se de saber ler as emoções nas pessoais e de não confiar em ninguém, incluindo ela própria. Ou seja, é tudo o que Elizabeth não é. Depois de alguns incidentes, as duas partem juntas para Las Vegas numa viagem de carro, onde cada uma procura perceber que emoções se escondem por detrás das capas exteriores. Ambas têm algo que necessitam de aprender com a outra, e é esse o princípio da sua amizade.

Mas esta história também não escapa ao vulgar, e fica de nova a sensação de que o que sobra em maneirismos falta em substância. Kar Wai não sabe filmar as suas personagens sem lhe dar o toque pessoal. Seja um desfoque, uma luz, um vidro. E se esse aspecto vai funcionando enquanto o filme se passa em Nova Iorque, perde completamente o interesse quando se desloca para as grandes planícies americanas. Junta-se-lhe a falta de consistência do argumento e temos uma segunda parte de filme bem aborrecida.

O melhor do filme ficou guardado para o cameo de Chan Marshall, mais conhecida entre nós como Cat Power. É um daqueles momentos que nos faz recordar a beleza que, se bem feito, pode ser o cinema. Embora sejam só 2 ou 3 minutos, compensa o investimento inteiro. Assim fossem os outros 87 minutos...

Classificação: 3/10

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O Segredo de um Cuscuz




Título original: La Graine et le Mulet
Realização: Abdel Kechiche
Ano: 2007

Abdel Keniche é um realizador de origem Tunisina, mas radicado em França desde muito novo. Não é por isso de estranhar que os seus filmes tenham como tema a experiência dos emigrantes árabes na França e a complexidade da sua adaptação ao território. Neste "O Segredo de um Cuscuz", o protagonista é Slimane Beiji (Habib Boufares), um homem na casa dos 60 anos que, depois de toda uma vida a trabalhar no cais a reparar barcos, é considerado dispensável pelos patrões. Os argumentos que lhe apresentam são simples: está velho, é lento e deixou de ser rentável. Encurralado por esta situação e a necessitar desesperadamente de um ganha pão, Slimane decide tentar concretizar um sonho, o de abrir um restaurante.

Mas a luta de Slimane por ultrapassar os obstáculos necessários para conseguir levar para a frente a ideia do restaurante está longe de ser o tema principal. Pelo contrário, funciona apenas como motor para apresentar as realidades sociais e pessoais da comunidade magrebina no geral, e desta família em particular. O ritmo do filme é lento, dolorosamente lento, as cenas correm por demasiado tempo, os diálogos e situações são do mais trivial que se imagine e os close-ups constantes. Tudo isto junto contribui para um realismo de certo modo apelador, mas também a um certo desequilíbrio dramático e a espaços alieanador.

Slimane é uma pessoa triste e conformada que vive num quarto do hotel cuja dona é a sua namorada, Latifa (Hatika Karaoui). Latifa tem uma filha, Rym (Hafsia Herzi), que considera Slimane seu pai e que lhe dá preciosas ajudas durante todo o filme. Souad (Bouraouia Marzouk) é a ex-mulher de Slimane e os filhos ainda acreditam numa reconciliação entre os dois. Quase nenhum dos filhos aceita a relação entre o pai, Slimane, e Latifa. Mas chega de falar das personagens e das relações entre elas, que, alias, são tantas que não saiamos daqui.

O mais importante não é a história nem as voltas (poucas) que ela dá, mas sim mostrar a luta diária destas pessoas, pegar num pedacinho das suas rotinas e expô-las no ecrã. É um filme duro e a exigir estômago, com uma banda sonora praticamente inexistente e uma banalidade que nos leva quase ao desespero. O milagre aqui é que, perante este estilo narrativo, primeiro estranha-se e depois entranha-se. Ou seja, no início só nos apetece sair porta fora e maldizer o dinheiro dado pelo bilhete, mas conforme o tempo vai passando vamo-nos habituando às personagens, aos seus tiques e às suas particularidades, identificamo-nos com elas e já não as queremos deixar. Mais importante, revemo-nos nas suas discussões insignificantes e no intimismo delas reconhecemos algumas das nossas próprias quezílias familiares.

É um filme naturalista cheio de potência dramática, que exige um pouco de paciência mas que acaba por compensar. Infelizmente, como já referi, a sua maior força é também a maior fraqueza. Estende-se por demasiado tempo (cerca de 2h e 30m) e não é um género que chame muitos adeptos. É um daqueles filmes que vemos uma vez na vida, mas nunca pensamos em revê-lo. Mas não deixa por isso de ser um retrato pungente da vida de uma população que não vive adaptado ao pais que os adoptou, que não consegue deixar a classe baixa, dos empregos instáveis e não-qualificados.

Por tudo o que referi, "O Segredo de um Cuscuz" é um filme muito conseguido, com grandes interpretações e uma grandeza que só não é maior por ter um final completamente desastroso. Não fosse esse facto, e estávamos perante uma obra quase perfeita, dentro do seu estilo. Assim sendo, não se consegue evitar uma pequena sensação de vazio ao abandonar a sala.

Classificação: 6/10

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Contas à Vida - 60's Dr. Estranho Amor




Título Original: Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb
Realização: Stanley Kubrick
Ano: 1964

Década de 60, a guerra fria atinge o seu auge, o conflito nuclear é uma ameaça séria à sobrevivência e as pessoas vivem em permanente medo e ansiedade. Duas potências confrontam-se num conflito sem fim à vista. O que fazer perante esta situação dramática? Stanley Kubrick tinha a resposta: uma comédia, e provavelmente a mais deliciosa comédia alguma vez feita. É assim que se vêem os génios: pega-se numa situação de iminente catástrofe e põe-se toda a gente a rir. Não é preciso efeitos especiais (poucos havia na época), nem histórias demasiado complexas e nem sequer muitos actores (Peter Sellers desempenha o papel de três personagens). Parece fácil, mas vai-se a ver é até bastante complicado, e provavelmente só Stanley Kubrick para nos trazer esta obra-prima. Quando se sabe...


Mas Stanley Kubrick não faz milagres sozinho. Ter Peter Sellers como protagonista ajuda e não é pouco, e o resto do elenco também não lhe fica a dever nada. O que mais impressiona é que nada é deixado ao acaso, tudo bate certo. Todos os movimentos, falas, expressões roçam a perfeição. A forma como é construída a tensão, o ritmo e a insanidade crescente é isenta de falhas. Apesar de toda uma carreira de fazer inveja, a realizar filmes brilhantes, a reinventar géneros e a influenciar movimentos, Stanley Kubrick conseguiu aqui o seu trabalho mais completo.

Dr. Strangelove não é uma comédia vazia de significado, muito pelo contrário. Embora não deixe nunca de ser hilariante, é um retrato bem sério dos tempos que se viviam e dos riscos de incontáveis perdas humanas, caso a insensatez continuasse a reinar. Uma visão aterradora que Kubrick nos oferece, mais importante que mil teses juntas sobre os efeitos da guerra fria. O sarcasmo e a ironia são uma constante, e o absurdo atinge níveis impensáveis - a conversa telefónica entre o presidente americano e o líder da União Soviética é o melhor exemplo disso.

Jack Ripper (Sterling Hayden) é um general da força aérea que perdeu completamente a noção da realidade. Está convencido que os comunistas estão a planear danificar os "preciosos fluidos corporais" dos americanos e ordena um ataque nuclear aéreo aos soviéticos, sem autorização dos superiores. O presidente (Peter Sellers), por seu lado, organiza uma reunião de emergência no pentágono para solucionar a crise e trazer de volta o avião enviado para lançar a bomba. Mas para que o avião regresse é necessário que Ripper revele o código para o efeito, e este recusa-se a fazê-lo. Para aumentar o problema, o embaixador russo na América revela que se a União Soviética for atingida por uma bomba nuclear, fará activar automaticamente um mecanismo denominado "Doomsday Machine", que tem como objectivo matar toda a vida na Terra.

A solução não está fácil de se encontrar e o tempo começa a escassear. Já em desespero, o presidente manda chamar o Dr. Stangelove (Peter Sellers), um cientista excêntrico ex-nazi que apresenta as propostas mais bizarras que se possa imaginar, e também os momentos mais hilariantes que se possa imaginar. Para mais, tem uma mão biónica que parece ter vontade própria e que volta e meia o tenta estrangular ou faz a saudação nazi. E como se ainda não fosse suficiente, o embaixador russo está mais preocupado em fotografar os segredos contidos na sala do pentágono do que em salvar o mundo da destruição.

A cena final, onde o Major 'King Kong' (Slim Pickens) se monta em cima da bomba em histeria, como se de um cavalo se tratasse, é de antologia. 34 Anos depois, o mundo deu muitas voltas, mas é como se os anos não tivessem passado para este filme. Tão assustador e cómico como no dia de lançamento, é uma verdadeira lição. Garanto-vos, o cinema não fica melhor que isto.

Classificação: 10/10